Presépio

        A varanda: o olhar mira a pequena horta que se perde ao descuido. Alheios, outros olhos veem as estrelas dançando nos céus. Da pequena horta pouco se colhe, um pouco pela ignorância, muito pelo desleixo. Vertem-lhe d’água à superfície, que a recebe como um rio caudaloso aos chuviscos da madrugada: finge absorvê-los, mas apenas leva-os ao distante lá. Cada vez menos força resta às raízes heroicas e moribundas.
        O olhar distrai-se da pequena horta, perdendo-se nas voltas da pequena estrada que lá adiante faz-se vista. A imagem duma carroça move-se longe, não tão longe, cada vez menos longe.
        E os olhos: os olhos continuam apaixonados, às estrelas testemunhando. O céu imenso: do céu muito se colhe, pouco se usa. A desgraça da horta, tão miúda, tão amaldiçoada, dela o mínimo se faz suficiente. O olhar se levanta, resignado, leva os passos à horta, encara-a. Os dentes espremem-se, os dedos se contraem. A jugular se incha e o olhar, o olhar mira os olhos que dos céus continua  absorvendo cada pouco que dele se pode absorver. Um grunhido animalesco chama a si os olhos, assustados e surpresos, olhos obedientes. O corpo é lançado ao chão sem mais pistas. Lançam-se pés e mãos à terra. Arranca-se um naco verde e murcho do chão. A lua, imensa e curiosa, ilumina os dois corpos, incomunicáveis, em mais um capítulo de revelação e surpresa. Espreme-se o vegetal colhido ao abdômen. Haraquiri bucólico, nada mais poderá salvá-los. Um abraço é tentado. Reconciliador ou desnecessário, não se pôde saber. A carroça – aquela mesma – fez-se presente, obrigando o casal a adentrar-se em seu presépio. Fecharam a porta tão rápido que nem perceberam o eclipse apagar as luzes daquela noite.

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