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Da magia dos livros

 A mesma pessoa que me convenceu a ver o filme do Chico Xavier (relembre) sugeriu-me A biblioteca mágica de Bibbi Bokken, dos escritores noruegueses Jostein Gaarder e Klaus Hagerup. Como havia gostado da primeira dica e como estou numa espécie de entresafra de afazeres, aproveitei para conferir.

Jostein Gaarder é mundialmente famoso por O mundo de Sofia, O dia do coringa e sei lá mais quantos livros. Dele, a Companhia das Letras já publicou mais de uma dúzia, sinal de credibilidade ou, no mínimo, de mercado – o que talvez não seja lá muito diferente, pensando-se no ramo editorial.

O mundo de Sofia, que ganhou uma adaptação televisiva bonitinha, mas ordinária, é um romance de formação juvenil, em que a protagonista recebe misteriosas cartas de um enigmático professor de filosofia. Não tenho autoridade intelectual para avaliar a pertinência técnica do livrinho, mas enquanto criação literária, apesar da inevitável [?] lentidão – não, não disse densidade, disse lentidão -, ele possui ótimas sacadas para seu público-alvo. A de que mais gosto está justamente no desfecho, quando os protagonistas lutam contra a mão determinista do escritor. Sim, é a mesma ideia em que se baseia o filme Mais estranho que a ficção.

 De O dia do Coringa, pouco me lembro. Notei inúmeras frases em comum com O mundo de Sofia, escrito quase que na mesma época. Ao contrário do que cheguei a pensar, Gaarder não havia esgotado suas ideias. Ei! Tem alguém aí? é um bom livro para crianças de 10, 11 anos, tratando de temas como solidão e interação social. 

Já A garota das laranjas e O vendedor de histórias, apesar do bom argumento, não são convincentes. Em ambos, o autor idealiza demais algum personagem, tornando-o pouco verossímil, fazendo com que apenas ingênuos iletrados sintam empatia por eles. O narrador do primeiro, tão convencido quanto pueril, em momento algum é desafiado por alguém mais inteligente. Seus acertos e seus erros são sempre avaliados por meio de um ego pouco dado à reflexão crítica.  Confuso? Explicarei novamente: ele é tão convencido que até seus erros são vistos como pequenos tropeços essenciais para um acerto  inúmeras vezes maior. Nunca há um arrependimento, um remorso, uma cicatriz que grude na pele e resista a água e sabão.

Em O vendedor de histórias, encontramos um narrador ainda mais convencido…

***

– Mas, afinal, ser convencido é um defeito?

– Quando a pessoa se gaba de suas virtudes em vez de mostrá-las, sim. É isso que acontece neste livro. O narrador diz ter criado 20 aforismos geniais, mas não os compartilha conosco.

– Ora, mas nada se salva?

– Há uma feliz autoironia quando o narrador sugere ter vendido uma história ao próprio Jostein Gaarder.

– Você se refere ao escritor barbudo com cara de hippie? Talvez não seja uma autoironia. Você pode ter viajado.

– Bom, em todo caso, ainda que seja uma autoironia, é muito pouco. Mas, como você notou, talvez nem isso haja.

– Mas, afinal, qual é o problema com personagens idealizados?

– John Ford foi um grande criador (ou divulgador) de mitos. Seus personagens são grandiosos, quase um modelo de conduta a que desejamos imitar, mesmo sabendo que não conseguiremos alcançá-los.

– Como assim? Você não acha que Ford cometa o mesmo erro, por exemplo, falsificando a imagem do Lincoln? 

– Concordo que o Lincoln dos filmes do Ford seja uma versão idealizada do Lincoln histórico, não disse que Ford seja perfeito.  Mas mesmo neste caso é importante notar a diferença. Mesmo esse Lincoln não é perfeito. Vemo-lo alegre, vamo-lo triste, vemo-lo em carne, osso e alma. Aliás, eu diria que Lincoln é humanizado pelos filmes do Ford.

– Humanizado? Quantos homens possuem essa grandeza?

– Poucos, mas como disse há pouco eles servem como símbolo daquilo que é possível. Inda que não alcancemos a grandeza desses homens, podemos nos mirar neles.

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A biblioteca mágica de Bibbi Bokken possui um ótimo argumento. Um casal de primos que vive em cidades diferentes resolve trocar cartas, mas não do modo convencional (nem tampouco do modo moderno, msn, e-mails e afins). Eles dividem um diário que é remetido de uma cidade a outra, de modo a que cada um saiba o que acontece com o outro. A história começa bem, mas justamente quando deveria ser mais ágil, instigante, ela fica cansativa e previsível.

É curioso que eu leia tantos livros de um sujeito que quase sempre me deixa insatisfeito. Não acho que isso seja um ponto necessariamente negativo. Se os argumentos fazem-me imaginar histórias que teriam rumos diferentes daqueles que o livro oferece, eles já servem como inspiração. Se o desdobramento faz-me torcer o nariz, ele já serve para me instigar o senso crítico. Está de bom tamanho.

Matando o tempo

Grata surpresa: descobri uma boa opção cultural para as noites de quarta e sexta, a Mostra Internacional de Cinema na [TV] Cultura, com frutos oriundos da Dinamarca, Irã, Argentina, Áustria, entre outros. Sei que é possível variar o cardápio sem sair das produções norte-americanas, mas também sei que os cinemas dos recônditos podem trazer sabores inusitados e, por que não?, aprazíveis – às vezes nem isso nem aquilo, mas, enfim, o paladar foi feito para ser testado.

Meu Irmão Quer se Matar aka Wilbur Wants To Kill Himself (Lone Scherfig / 2002 / Dinamarca, Inglaterra, Suécia, França) conta a história de Wilbur, um insistente suicida em potencial, já famoso por suas tentativas frustradas de dar cabo à própria vida. O filme começa com Wilbur tentando se matar: ele fecha as janelas do apartamento, reduzindo assim a ventilação, depois ele liga o gás, que em minutos o envenenaria. Tudo pronto, basta despedir-se do irmão. Então Wilbur telefona a Harbour, tentando contar-lhe o porquê desse estranho desejo. Harbour, porém, em vez de ouvir as explicações filosóficas do caçula, prefere correr até o apartamento deste para tentar – e conseguir – salvar-lhe a vida.

Não foi a primeira, nem seria a última vez. As tentativas de suicídio são uma rotina na vida de Wilbur, e como tal banalizaram-se. Fora o irmão, ninguém mais se impressiona ou se importa. Órfão de pai e mãe que o tinham como predileto, sem amigos, sem namorada, sem nenhum interesse específico pela vida, Wilbur é um egoísta. Não, não foi um lapso. Não quis dizer niilista, você leu certo: Wilbur é um egoísta. Eis o tema do filme.

O par antitético de Wilbur é justamente seu irmão. Harbour, o primogênito, cresceu à margem do caçula, acostumando-se desde cedo a ser o coadjuvante. Preterido pela mãe, preterido pelo pai, preterido por si mesmo. Por isso ele nem se incomoda quando suspeita que sua esposa está  tendo um affair com Wilbur – nunca o vi tão feliz.

Em meio a personagens egocêntricos, Wilbur, Alice (a esposa), Horst (o médico), Harbour pode até se passar por altruísta. No entanto, a verdade é que em nada ele lembra os comoventes e heróicos seres que habitam os filmes de John Ford. Se em As vinhas da ira, Como era verde o meu vale ou em O jovem Lincoln, há de um modo ou outro um admirável desapego material, aqui o que temos é um ególatra às avessas, um egoísta que cultiva o ego de outra pessoa. Nem Wilbur nem Harbour são admiráveis. A prova definitiva, para quem a exige: Harbour é enterrado numa cova sem lápide, sem nada que o identifique, sem nada que preste a lhe preservar a memória, um túmulo isolado, invisível, como se feito para o esquecimento, como se feito para condenar um suicida.[1]

 


[1] Platão. Leis IX, 873 C2-D8, in Fernando Rey Puente, Os filósofos e o suicídio.

John Ford X Corinthians

 Penso o que fazer nesta noite de quarta-feira. O salmão curte seus últimos instantes na grelha; o chadornnay está na temperatura ideal. De bucho abastecido, só me restará uma lacuna a preencher: o que ver na tv?

 O título da crônica já antecipa minha hesitação em como ocupar duas horas da noite de hoje. De um lado, John Ford é o diretor que eu mais venho apreciando em 2010; do outro, o Corinthians, no ano do centenário, ainda não deu motivos para tal.

 De um lado, a certeza de que verei um grande filme, talvez não tão poderoso e ossudo quanto Rastros de Ódio ou delicado e simpático quanto Como era verde o meu vale. Não importa. Em John Ford eu sei que posso confiar.

 Do outro lado, a forte desconfiança de que o time e a torcida vão se esforçar muito, mas cedo ou tarde um gol, um mísero gol da negra ave carnívora, fará a fúria abater o controle; o enlouquecido Dionísio mandará a pontapés Apolo para bem longe de si. Até mesmo o capitão William, que tão bem se portou na final da Copa do Brasil 2009, pode voltar a ser o possuído que mereceu a expulsão na final do mesmo torneio em 2008.

 Todo corintiano lúcido já deixou de confiar no alvinegro. Na contabilidade de cada torcedor consta um gol rubro-negro a ser anotado após os 40 do segundo tempo. Pode parecer excesso de pessimismo, mas creio que essa seja a melhor notícia para o descrente fiel.

 Ninguém, ninguém lúcido relembro, acredita que Ronaldo voltará a ser Ronaldo, que Dentinho jogará bem o jogo todo sem ser agraciado com o temível cartão vermelho, que a zaga alvinegra anulará o preguiçoso e perigoso atacante adversário.

 O imponderável bateu na trave duas vezes essa semana: o Santo André quase tirou a taça do invencível Santos de Pelé, Kaká e Cristiano Ronaldo; um time peruano quase eliminou o melhor time da América. O futebol precisa de surpresas, de vitórias inacreditáveis. Sem elas, ele perde a graça, que nem o automobilismo na época em que o sapateiro alemão, o melhor de todos, esbanjava sua infinita superioridade.

 Os deuses do futebol certamente pretendem aprontar alguma. Penso porém em 2009. Final da Copa do Brasil. Em poucos minutos, o Corinthians estragou o jogo ao exigir do inimigo uma quantidade impossível de gols.

 No ano passado, o Corinthians subverteu sua tradição e conquistou um título sem maiores emoções. Sim, é triste admitir, mas ele merece ser punido. Se nesta noite houver um escolhido, este será o Atlético Mineiro,  numa história bonita, se incrível esforço e superação, uma história digna de John Ford.

P.S.: Se bem que em várias histórias do grande mestre, por mais que haja esforço e dedicação, o tom trágico não escapa aos protagonistas.

Sobre a dignidade

 Estou pensando em Como era verde o meu vale e No tempo das diligências , em como John Ford sabia dar dignidade a seus personagens. Os indivíduos todos daquela família galesa, sem exceção, revelam seus defeitos e suas virtudes ; às vezes mais até do que as pessoas do mundo real, eles expressam vida, ânimo. Os filhos socialistas discutem com o pai conservador, mas tanto este como aqueles desejam um mundo mais justo, ideal este sempre colocado acima de suas ocasionais ideologias.

No famoso western, bandidos, malandros e prostitutas também são vistos como seres passíveis de virtudes. Talvez vejam aqui uma filosofia determinista – o meio determina o homem – mas eu vejo algo mais sutil: o meio interfere no homem, mas não é isto que o determina. Do mesmo modo que eu não vejo com bons olhos a ideia de que a genética determine o caráter, me parece simplista demais achar que o indivíduo seja um mero ecoar do espaço em que ele reside. Talvez por isso, a relação afetiva que eu tenho com esses dois filmes seja-me tão marcante.

A dignidade merece elogios. Pensei nisso particularmente nos últimos dias, quando ouvi uma aluna dizer que apenas passar de ano já é o suficiente e quando vi outra comemorando um 5,3. Por outro lado, no mesmo ambiente, vi uma garota de dez anos dizendo que ficar de recuperação não é tão ruim assim, afinal desse modo ela poderá rever a matéria, corrigindo os erros cometidos. E também foi bastante agradável ser abordado por um jovem – que também havia tirado 5,3 – em busca de dicas para poder melhorar o desempenho.

 O desejo de evolução, a busca por novos limites a serem superados, é uma excelente conduta. Estou certo de que esses jovens também apreciariam os filmes do Ford.

***

P.S.: E O jovem Lincoln, a dignidade do protagonista mostra-se mais caricatural, mais simbólica que verdadeira. É o defeito deste filme pelo qual nutro certa simpatia, mas nem de longe paixão.

Simples, sem ser simplista

Li que uma das virtudes de Avatar seria a simplicidade com que o filme trata temas importantes como degradação ambiental, respeito à natureza, ética científica etc, tornando-o mais acessível ao grande público. Concordo com quase tudo isso: de fato James Cameron fez um filme simplista e facilitador, atingindo assim um grande público (e coincidentemente uma grande bilheteria), sem, no entanto, entrar nos complicados meandros argumentativos que poderiam incomodar o espectador (com S mesmo) mais inculto. Só não concordo que isso seja uma virtude.

 Por outro lado, isso não significa que um grande filme tenha de ser obscuro e hermético (“A clareza é a cortesia do filósofo”, Goethe). Na última semana vi dois filmes de John Ford que ilustram muito bem esta tese.

 O enredo de Como era verde o meu vale (How green was my valley), de 1939, é simples. Através das memórias infanto-juvenis do sexagenário narrador, somos levados a uma pequena cidade mineradora do País de Gales, onde assistimos a diversos episódios em torno de sua família: o trabalho na mina de carvão e o pó que se impregna para sempre na pele (uma imagem daquelas que nos acompanham a vida toda), o casamento do irmão e a descoberta ingênua do sexo oposto, a exploração do proprietário e a tentativa de greve, a chegada de um jovem pastor e o affair entre ele e a irmã, que posteriormente se vê obrigada a casar com o filho do dono da mina…

 Por meio desses e de outros episódios, vamos conhecendo os familiares. Os pais são apresentados do modo mais caricato possível: ele, o cérebro, ela, o coração. No entanto, não se vê o esquema machista de um BlackBoard Jungle que foi feito década e meia depois! Ainda que ele seja o cérebro, nem sempre suas decisões são movidas pela razão e nem tudo que ela pensa é meramente emotivo e passional. Melhor assim, as pessoas de verdade são complexas e imperfeitas.

 Do mesmo modo, articula-se o debate entre pai e filhos, estes influenciados por um pensamento comunista, de luta em prol do oprimido; aquele conservador, crente em valores antigos como dignidade e correção. A briga familiar só se resolve quando o pastor recebe a palavra e propõe aos trabalhadores uma luta – argumentativa e honesta – pelos seus direitos. Eis a síntese! John Ford recusa a hipocrisia conservadora de muitos religiosos, sem abrir mão dos princípios cristãos, John Ford recusa a violência esquerdista, sem abrir mão dos princípios de justiça e respeito ao indivíduo. Acho que li em algum lugar que John Ford (ou teria sido Clint Eastwood?) seria o mais democrata dos republicanos. Bobagem (não importa a quem a frase se dirige). Não dá para caracterizá-lo[s] com um adjetivo simplista ou binário. Ainda bem.

 Quem vir o filme perceberá que à medida que há um distanciamento entre as personagens e o narrador, elas são mais estereotipadas. Longe de ser um defeito, trata-se da coisa mais sensata do mundo. Como o garoto poderia recriar profundamente a psicologia de quem ele mal conheceu? Os estranhos sempre nos são uma caricatura, oras!

 Falarei pouco de A mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln), 1941. Trata-se de outro filme que nos conquista pelo afeto (seria possível não se apaixonar pela atmosfera fordiana?). Pode-se dizer que ele seja esquemático, previsível, mas ao contrário de Avatar parece-me que ele defende ideais absolutos, o que tornaria o didatismo não só perdoável como digno de elogio – lembremos de que o filme foi feito sete décadas atrás.

 Luiz Carlos Merten, num livro que eu não canso de reler, afirma que o diretor se preocupa menos com a verdade histórica do que com o papel simbólico que a história pode desempenhar. Ford seria então um criador de mitos, um Homero. Por isso talvez sua grande capacidade de criar imagens que nos ficam no coração sem nos ofender o cérebro. Simples assim.

Adjetivações

Por ocasião de uma brincadeira que fiz sobre uma propaganda da revista Veja, um leitor apressado chamou-me de petista. Bom, se ele fosse menos preguiçoso, teria lido melhor o blog e visto textos em que eu elogio filmes que de modo algum espelham o viés sociológico tão querido das esquerdas (caso de Sherlock Holmes e Benjamin Button) ou outros em que eu critico abertamente a massificação perigosamente disfarçada de coletivismo (caso de A onda e Ninguém escreve ao coronel) ou ainda um em que eu repudio a propaganda homofóbica da Marta. Mas nem era preciso tanto esforço. Se ele fosse honesto, teria visto no mesmo post elogios a dois articulistas da mesma revista, o que evidencia que a crítica era específica, e não genérica como ele conseguiu entender.

Já falei demais do Moacir, coitado. Na verdade, ele, como indivíduo, caso o seja, pouco me interessa. Mas convém discorrer sobre sua curiosa postura. É típico das cabeças que não conseguem articular um raciocínio satisfatório, valer-se de adjetivações simplistas, estereótipos sem os quais não se consegue fingir um mínimo de inteligência. Por isso, mas não só por isso, é interessante ver e rever alguns filmes de John Ford, como As vinhas da ira ou Como era verde o meu vale. Pode-se discutir a noite toda sobre a postura ideológica do diretor: trata-se de um cristão ou de um comunista? – perguntam-se os escravos dos adjetivos soltos. Ora, em ambos os filmes, o que vemos é um forte senso ético, que não se submete nem à hipocrisia de muitos cristãos nem às falsas promessas de muitos – todos? – socialistas. Querer reduzir o caráter de um homem a um adjetivo que esteja na moda é furtar-se da condição de ser racional.

Ao contrário do que já saiu publicado na Veja, existe sim muita diferença entre ter cultura e apenas disfarçar a sujeira com verniz, ainda que pessoas como o Moacir não consigam perceber.