Arquivos

Frankenstein: uma história de Mary Shelley, contada por Ruy Castro – Roteiro de leitura.

         Quase sempre um livro conta mais de uma história. A mais evidente de todas é aquela que se pode resumir no enredo, aquela que aparece nas sinopses mais preguiçosas. Há também fragmentos de histórias que o autor coloca aqui e ali talvez para dialogar com o leitor mais atento ou curioso. Sempre quando leio, gosto de procurar no enredo (ou por trás dele) pistas das histórias que o leitor quer que encontremos. Sim, eu sei que há algo de infantil nisso que estou escrevendo. Não há como provar que isso que eu chamo de pistas tenham sido usadas de modo intencional. Quer saber? Pouco importa. O barato da literatura (e também de outras obras de arte) é que ela nos permite análises e interpretações diversas (umas mais outras menos pertinentes, concordo). E, para mim, uma tentativa de interpretação, ainda que equivocada, é muito melhor do que aquela leitura passiva, de quem não se entusiasma com a possibilidade de sentir os sabores (às vezes acres) que a leitura nos proporciona.

         Se estiver a fim, aproveite o roteiro:

  1. Quem eram os alquimistas? Por que Victor Frankenstein os admirava?
  2. Qual era a grande ambição de Victor?
  3. Quais sacrifícios Victor fez para perseguir seus sonhos?
  4. Com base na p. 15 (e na história como um todo), faça um pequeno texto comentando a relação entre razão e loucura. Se tiver interesse em aprofundar suas reflexões, sugiro os filmes Um estranho no ninho, de Milos Forman (a história de um hospício administrado com racionalismo e mão de ferro) e Homo sapiens: 1900, de Peter Cohen (sobre como a Ciência foi usada para legitimar preconceitos e genocídios).
  5. Em que momento, Victor se compara a Deus? Pesquise histórias similares, como “a torre de Babel”, “o mito de Ícaro”, “Prometeu Acorrentado”.
  6. De acordo com Victor, uma descoberta científica é feita por um único indivíduo? Justifique.
  7. Victor assume que, em nome da ciência, ele cometeu crimes, praticou atos bárbaros, até mesmo desumanos. Pesquise exemplos atuais de atos bárbaros praticados pela ciência, identificando aqueles que você considera justificáveis e aqueles que você considera lastimáveis. (De certa forma, os itens a seguir são uma paráfrase deste)
  8. Até que ponto a evolução da ciência é uma boa desculpa para cometermos crimes?
  9. Quais sacrifícios devemos fazer em nome da ciência?
  10. Por que Victor não nos conta como conseguiu dar vida ao monstro?
  11. Por que Mary Shelley, a autora do livro, não nos conta como Victor conseguiu dar vida ao monstro? (note que esta pergunta é bastante diferente da anterior)
  12. Que tipos de lições a morte de William poderia dar a Victor?
  13. No livro há muitas hipérboles (Figura de linguagem marcada pelo exagero. Por exemplo: “Estou morto de fome…”, “Eu comeria até explodir!”, “Eu atravessaria o oceano a nado por um prato de comida”). Você seria capaz de identificar três usos dessa figura? Na sua opinião, qual é a função da hipérbole na história? Você consegue imaginar outros usos / outras funções para a hipérbole?
  14. Em diversos momentos da história, a natureza parece refletir os sentimentos das personagens. Localize três trechos em que isso acontece. Qual é a função desse recurso na história?  Você consegue imaginar outros usos / outras funções para esse recurso?
  15. No primeiro encontro entre os dois, o monstro censura Victor. Por que ele faz isso?
  16. Como o livro explica a inteligência do monstro?
  17. Cite alguns exemplos da inteligência e da sensibilidade do monstro.
  18. “Que estranho, pensei, a mesma causa produzir efeitos tão diferentes!”. Nesse trecho, o monstro está refletindo. Essa passagem deveria fazer com que você se lembrasse de um outro personagem monstruoso que frequentemente ficava refletindo. Que personagem é esse?
  19. O monstro, ao contrário do que costumamos esperar de um monstro, aparenta possuir uma sensibilidade lírica (poética). Relate o episódio em que ele quase chora de emoção.
  20. O que a narrativa do monstro nos revela a respeito da sua índole?
  21. Reflita: o monstro é de fato um monstro?
  22. Pesquise: que revolução é essa que aconteceu na França e foi responsável pelo exílio da família (p. 64)?
  23. O que o monstro aprende com o livro As ruínas dos impérios (Les Ruines, ou méditations sur les révolutions des empires), do Conde de Volney?
  24. “Quem era eu? Ou o que era eu?” (p. 75). Explique a diferença entre as duas perguntas do monstro.
  25. No item anterior, percebemos que as perguntas possuem um tom existencialista. O mesmo teor é verificado nas inquietações de Hentzau (A Maldição da Pedra)? Explique as semelhanças e as diferenças entre esses dois personagens.
  26. As leituras do monstro talvez tenham um significado simbólico. Com base na narrativa do monstro, com base na aula do dia 21 de fevereiro, com base na sua experiência de leitor, responda: qual é a função (ou quais são as funções) da literatura?
  27. Releia a p. 83 e responda: qual pode ser um dos sentidos simbólicos de o monstro não possuir um nome?
  28. O que motivou o monstro a mudar de índole?
  29. O que o monstro pede a Victor?
  30. Na passagem da página 95 para 96, somos informados que o amor é o único sentimento capaz de eliminar a crueldade do monstro. Você consegue pensar em outras histórias (podem ser livros ou filmes) que valorizam este sentimento de modo similar?
  31. O que levou Victor a romper o pacto com o monstro?
  32. “Em seu rosto, vi a expressão da malícia e da traição” (p. 102) Explique por que o trecho anterior não pode ser considerado uma prova de que o monstro fosse malicioso ou traiçoeiro.
  33. Por que o monstro, em vez de desaparecer, deixou pistas para que Victor o perseguisse?

Leia menos

      Leia menos – é com esse pedido quase suicida que Gerson Santos apresenta seu ambicioso livro de ensaios. Aposta arriscada, visto que livros assim (haverá outros?) pedem textos rápidos e ligeiros que não se percam na pressa ou na superficialidade. A quem o vê pronunciar frases como “muitas vezes gastamos tempo demais com a leitura” e sente uma vontade danada de enforcá-lo, ele pede um pouco de paciência e reflexão. Seria justamente esse o problema: lemos muito, pensamos pouco. Precisamos de tempo para digerir, assimilar, regurgitar se for o caso. A leitura não pode ser passiva. Quando lemos, o advérbio importa mais que o objeto.
     Não por acaso, o livro se divide em dois ensaios curtos. Não por acaso, em Leia mais, a proposta é a mesma. Um bom livro nos exige intimidade; carinho e malícia. Um livro só é bom se lido mais de um vez. Por isso, não espanta saber que a divisão dos ensaios seja quase invisível – não há índice indicando onde termina um e começa o outro. No entanto, a grande sacada estrutural está no insistente uso dos aforismos. Suas frases curtas e provocantes, que ora situam, ora jogam tudo para o alto, forçam-nos a uma leitura atenta e incisiva. Ainda que haja um quê de lugar-comum, é uma leitura prazerosa – eis a vantagem dos livros curtos.

Da importância da alienação

– Deus do céu, como Eça é chato! Que aluno hoje em dia consegue ler A ilustre casa de Ramires sem bocejar um sem número de vezes? E A cidade e as serras, então? Eita historinha manjada… a oposição binária entre viver no campo ou na metrópole cheira a maniqueísmo. Ou ainda aqueles romances pouco convincentes que o Machado fez muito bem em recusar…

– Ei, “pera-lá”! Uma coisa de cada vez. Acho que essas três críticas possuem naturezas diferentes. Vamos analisá-las uma a uma.

– Para mim, todas levam a um mesmo ponto:  é preciso fazer os alunos lerem algo próximo da realidade deles e não essas coisas datadas, envelhecidas e desimportantes.

– Calma, calma. Não é enumerando adjetivações que se expressa uma ideia.

– Novamente você com esse puritanismo apolíneo. Injete um pouco de Dionísio nas veias.

– ‘Tá, daqui a pouco você continua com esses seus aforismos. Deixe-me, primeiramente, entender a questão. Você disse que o Machado recusou os romances do Eça, certo?

– Sim, ele achava a questão central d’O primo Basílio pouco convincente, tudo se resumia a um mero encaixe de acasos. Se a empregada gananciosa e invejosa não tivesse encontrado as cartas, não haveria história.

– Acho que esse resumo não toca na essência da crítica.

– Mas o Machado fez referência a esse episódio chamando-o de “defeito capital”, assim Ipsis litteris, sem tirar nem pôr.

– Sim, mas esse episódio é consequência da falta de personalidade da Luiza, eis o ponto.

– Não sei se o Machado foi tão claro em expor essa tese.

– Talvez por isso mesmo ele tenha voltado ao assunto duas semanas depois. Em todo caso, o que sabemos é que Machado estava bastante preocupado com a consciência das personagens. Talvez, mais importante do que as ações em si sejam o que as motivou. Atentemo-nos à causa, e não apenas aos efeitos.

– Meu amigo, você não percebe que com toda essa pompa argumentativa você acabou se traindo e trazendo mais razões à minha razão?

– Como assim?

– Ora, o meu intuito é desqualificar o Eça. E você está me ajudando.

– Bom, meu intuito não é defender o Eça, mas sim compreender melhor a questão que você me propôs. Em todo caso, a ressalva do Machado não elimina as qualidades do Eça, até porque ele não parou de escrever em 1878; sua literatura não se resume às primeiras obras. Do mesmo modo que não julgamos o Machado somente por aquilo que ele escreveu até este período.

– Mas de que adianta essa afirmação óbvia e redundante? Todo mundo evoluiu, nem que seja na horizontal. Mas de que adianta evoluir para chegar a uma historinha manjada como a de A cidade e as serras?

– Bom, A cidade e as serras é uma novela e não um romance propriamente dito. Assim sendo, é meio esperado que ela não tenha a densidade psicológica de um Dom Casmurro, por exemplo. Mas, por outro lado, eu concordo que as características típicas de um gênero não devam ser uma amarra ao escritor.

– Agora sim você parece me entender. O escritor deve se expandir além dos limites da expectativa.

– É que na minha opinião A cidade e as serras não é um livro tão tímido assim. Alguns críticos estão revendo o papel deste livro. Talvez haja um cinismo bastante sutil. Nunca lhe ocorreu que o narrador,  Zé Fernandes, talvez esteja tirando um barato do Jacinto o tempo todo?

– Ah, “pera-lá”! Você vai cair nessa de ler o Eça como se ele fosse o Machado?

– Bom, ainda que seja uma suposição forçada, ela traz uma nova cara ao texto. Talvez o Eça tenha escutado as dicas do Machado. No mínimo, acho que é uma discussão que vale a pena. Ela até dá mais vida ao livro.

– Uma vida que o próprio livro não tem!

– Não seja chato. Os grandes escritores merecem ser revisitados.

– E quanto a A ilustre casa de Ramires? Que aluno hoje em dia curtiria revisitar esse texto antigo, de uma época antiga, sobre pessoas antigas que não nos dizem respeito?

– Acho que é exatamente esse o ponto. A arte pode fazer com que expandamos nossos horizontes.

– A arte deveria fazer o indivíduo conhecer melhor a sua época, o seu contexto.

– Sim, mas ao mesmo tempo precisamos de outros parâmetros. O outro nos ajuda a conhecer o eu.

– Esse tipo de literatura, que nos leva a outras épocas, outros contextos, é alienante!

– Houve uma época em que o nosso contexto era a placenta. De acordo com seus termos, nascer é uma forma de alienação. Então, viva a alienação!

* * *

O diálogo acima se baseia, entre outras coisas, no seguinte trecho de Gorazde, de Joe Sacco:

Da arte de rabiscar o chão

“Meu tempo é quando” (Vinícius de Moraes)

“O gosto do quando é o tempo e o ser. É o verbo e sua consequência. É o ser e sua causa. São os advérbios com sabores adjetivos. […] Escolho o advérbio para substantivar o gosto, como um adjetivo de vida. Escolho o gosto do ainda, o gosto do enquanto […] O gosto do quando é o tempo tocando a língua do cotidiano” (Fabrício César de Oliveira)

Não podemos parar o tempo; o tempo não para. Mas a vida segue, quer demos ou não um rumo a ela, imperativa a vida segue. Eis o pressuposto contra o qual existimos.

Aproveitando-se da deixa do poetinha, Fabrício conduz o devaneio para o agora, aparente contradição sem a qual nos entregaríamos a uma vida regida somente pela mecânica ou pela ideia. Sim, há um quê de Alberto Caeiro sem, no entanto, aquele rancor mal escondido, aquele mau humor carrancudo. Aqui, a razão combate o racionalismo com a leveza de quem pretende decodificar o sentimento juvenil que, espero eu, todos nós um dia tivemos a sorte de possuir. A começar pela integração entre o tempo e o ser, não mais elementos antitéticos (o homem versus sua perenidade), mas complementares (o homem é – essere verbo intransitivo).

Advérbios com sabor adjetivos? Eis uma sacada daquelas que invejamos, de tão bonita e sintética, simples como todo achado grandioso. “Meu tempo é quando” ecoaria “o homem é”, o qual ecoa o “j’existe” que Godard pôs na boca de Pierrot, le fou. O presente presentificado, na ponta da língua, o paladar, a sensação tátil mais saborosa – saber é conhecer o sabor. Sinestesicamente belo esse achado.

Mas os poemas são coerentes com a poética? Peguemos um exemplo:

 

Uma confissão mineira

Era as Gerais das Minas mais nobres.
Era o quintal da infância de tantos
Era o campo da fé em todos meus santos
É da terra que retiro meus sonhos, meu cobre.

Sou mineiro, sou bobo, sou malungo, sou pobre.
Pois riqueza maior corre como criança pelo quintal
ao som das prosas à lenha e de minha avó em seus cantos.

 No primeiro verso, o pretérito imperfeito remete aos contos de fada, e a inversão sintática amplia o significado de seu estado natal, indicando – como ficará claro na sequência – que a nobreza dessas minas não são seus minérios em sentido literal.

“Era o quintal da infância de tantos” parece dialogar com o leitor, como se perguntasse se também nós tivemos a felicidade de vivermos num quintal cuja amplitude extrapolava o espaço físico, um lugar em que nossos sonhos e crenças eram substantivamente concretos, época em que a fantasia tinha a consistência do cobre, nosso arcabouço, nossa proteção, nosso mais puro e malicioso ser.

Sem essas lembranças, sem o desejo de reviver um pouco dessa experiência, somos inequivocadamente pobres.

***

O blog: http://ogostodoquando.blogspot.com
O livro: http://www.pedroejoaoeditores.com.br/o-gosto-do-quando.html

Da magia dos livros

 A mesma pessoa que me convenceu a ver o filme do Chico Xavier (relembre) sugeriu-me A biblioteca mágica de Bibbi Bokken, dos escritores noruegueses Jostein Gaarder e Klaus Hagerup. Como havia gostado da primeira dica e como estou numa espécie de entresafra de afazeres, aproveitei para conferir.

Jostein Gaarder é mundialmente famoso por O mundo de Sofia, O dia do coringa e sei lá mais quantos livros. Dele, a Companhia das Letras já publicou mais de uma dúzia, sinal de credibilidade ou, no mínimo, de mercado – o que talvez não seja lá muito diferente, pensando-se no ramo editorial.

O mundo de Sofia, que ganhou uma adaptação televisiva bonitinha, mas ordinária, é um romance de formação juvenil, em que a protagonista recebe misteriosas cartas de um enigmático professor de filosofia. Não tenho autoridade intelectual para avaliar a pertinência técnica do livrinho, mas enquanto criação literária, apesar da inevitável [?] lentidão – não, não disse densidade, disse lentidão -, ele possui ótimas sacadas para seu público-alvo. A de que mais gosto está justamente no desfecho, quando os protagonistas lutam contra a mão determinista do escritor. Sim, é a mesma ideia em que se baseia o filme Mais estranho que a ficção.

 De O dia do Coringa, pouco me lembro. Notei inúmeras frases em comum com O mundo de Sofia, escrito quase que na mesma época. Ao contrário do que cheguei a pensar, Gaarder não havia esgotado suas ideias. Ei! Tem alguém aí? é um bom livro para crianças de 10, 11 anos, tratando de temas como solidão e interação social. 

Já A garota das laranjas e O vendedor de histórias, apesar do bom argumento, não são convincentes. Em ambos, o autor idealiza demais algum personagem, tornando-o pouco verossímil, fazendo com que apenas ingênuos iletrados sintam empatia por eles. O narrador do primeiro, tão convencido quanto pueril, em momento algum é desafiado por alguém mais inteligente. Seus acertos e seus erros são sempre avaliados por meio de um ego pouco dado à reflexão crítica.  Confuso? Explicarei novamente: ele é tão convencido que até seus erros são vistos como pequenos tropeços essenciais para um acerto  inúmeras vezes maior. Nunca há um arrependimento, um remorso, uma cicatriz que grude na pele e resista a água e sabão.

Em O vendedor de histórias, encontramos um narrador ainda mais convencido…

***

– Mas, afinal, ser convencido é um defeito?

– Quando a pessoa se gaba de suas virtudes em vez de mostrá-las, sim. É isso que acontece neste livro. O narrador diz ter criado 20 aforismos geniais, mas não os compartilha conosco.

– Ora, mas nada se salva?

– Há uma feliz autoironia quando o narrador sugere ter vendido uma história ao próprio Jostein Gaarder.

– Você se refere ao escritor barbudo com cara de hippie? Talvez não seja uma autoironia. Você pode ter viajado.

– Bom, em todo caso, ainda que seja uma autoironia, é muito pouco. Mas, como você notou, talvez nem isso haja.

– Mas, afinal, qual é o problema com personagens idealizados?

– John Ford foi um grande criador (ou divulgador) de mitos. Seus personagens são grandiosos, quase um modelo de conduta a que desejamos imitar, mesmo sabendo que não conseguiremos alcançá-los.

– Como assim? Você não acha que Ford cometa o mesmo erro, por exemplo, falsificando a imagem do Lincoln? 

– Concordo que o Lincoln dos filmes do Ford seja uma versão idealizada do Lincoln histórico, não disse que Ford seja perfeito.  Mas mesmo neste caso é importante notar a diferença. Mesmo esse Lincoln não é perfeito. Vemo-lo alegre, vamo-lo triste, vemo-lo em carne, osso e alma. Aliás, eu diria que Lincoln é humanizado pelos filmes do Ford.

– Humanizado? Quantos homens possuem essa grandeza?

– Poucos, mas como disse há pouco eles servem como símbolo daquilo que é possível. Inda que não alcancemos a grandeza desses homens, podemos nos mirar neles.

***

A biblioteca mágica de Bibbi Bokken possui um ótimo argumento. Um casal de primos que vive em cidades diferentes resolve trocar cartas, mas não do modo convencional (nem tampouco do modo moderno, msn, e-mails e afins). Eles dividem um diário que é remetido de uma cidade a outra, de modo a que cada um saiba o que acontece com o outro. A história começa bem, mas justamente quando deveria ser mais ágil, instigante, ela fica cansativa e previsível.

É curioso que eu leia tantos livros de um sujeito que quase sempre me deixa insatisfeito. Não acho que isso seja um ponto necessariamente negativo. Se os argumentos fazem-me imaginar histórias que teriam rumos diferentes daqueles que o livro oferece, eles já servem como inspiração. Se o desdobramento faz-me torcer o nariz, ele já serve para me instigar o senso crítico. Está de bom tamanho.

Confabulando

De uns dias para cá, você tem pensando em alegorias.
É verdade. O discurso simbólico, a metáfora, essas coisas todas me interessam.

Mas elas vêm lhe interessando de modo especial ultimamente, não?
Sim. Depois de participar da realização do Furumbelo, comecei a esboçar as estruturas – ou melhor: os parâmetros para um novo projeto.

Explique-se.
Antes mesmo de ter uma estrutura, um roteiro, um mote, um ideal, comecei a pensar na linguagem com que poderei desenvolver novos projetos, sejam eles didáticos ou não. A alegoria me surgiu como uma boa opção.

Quando penso em alegoria, a primeira coisa que me vem à cabeça são as fábulas e os contos de fada.
Mas não só isso. A poesia…

Os evangelhos…
Os mitos…

Enfim, podemos dizer que a alegoria permeia nossa compreensão do mundo.
Eu diria que as melhores permeiam nossas incompreensões – com prefixo e no plural, por favor. Não gosto muito de obras de arte com pretensões didatizantes.

Você sabe, porém, que a moral é um atributo essencial da fábula. Há como escapar do didatismo?
Não sei se é realmente um atributo essencial. Sei, é claro, que os livros didáticos a tratam assim, mas o escritor deve ir além das premissas reducionistas.

Na sua opinião, a fábula ideal não transmitiria valores?
Toda obra de arte compartilha valores (“transmitir” supõe uma postura extremamente passiva por parte do apreciador). A questão é evitar os chavões e os lugares-comuns moralizantes que, aliás, são correntes em toda obra destinada a adestrar crianças. Pensemos, por exemplo, em As aventuras de Pinóquio.

O livro de Carlo Collodi? Você não o vê como uma espécie de romance de formação?
Sim. Um romance de formação infanto-juvenil: a criança tornando-se adolescente. Mas a fórmula não me parece ter envelhecido bem. Acho que em Alice, de Lewis Carroll, o discurso é mais bem articulado – e menos politicamente correto. Mas voltemos a falar de Pinóquio.

Fique à vontade.
É curioso notar que seu personagem mais interessante, mais complexo, mais humano, mais atual, costuma ser deixado em segundo plano. Não fosse pelo anacronismo, poderíamos dizer que Gepeto é o símbolo da solidão moderna, daqueles que buscam na ficção da internet o substituto à amizade verdadeira; o tom onanista com que cria seus bonecos de madeira ecoaria as incessantes tecladas de que nos valemos em busca de um pseudointerlocutor.

Pinóquio parece não sofrer desse mal. Vemo-lo arrependido, vemo-lo com remorsos, mas em momento algum ele parece de fato solitário.
Pinóquio é bastante previsível, meio simplista até.

Poderia ser diferente?
Creio que sim. A propósito, foi lançado ano passado um filme interessantíssimo, Air Doll, do diretor japonês Hirokazu Kore-eda.

Creio que ele foi exibido na Mostra Internacional…
Isso mesmo. Com um ano de atraso, ele chegou ao Brasil.

Ao menos chegou…
Se ele não chega até nós, nós chegamos até ele.

Conte um pouco a respeito do filme. Ouvi falar que é uma espécie de adaptação do Pinóquio.
Exato. O filme começa mostrando o cotidiano de Hideo, um solitário homem de meia idade, com sua boneca inflável. Ele conversa com a boneca, passeia com a boneca, janta com a boneca – com e sem preposição. Trata-se de um pobre coitado que conquista nossa pena e, quiçá, simpatia.

Não etimologicamente falando, espero.
Gosto é gosto. Enfim… Sintetizando: chega certo dia em que ela cria vida, resolve ir às ruas, conhecer um pouco da cidade, ver como se comportam as pessoas – sempre às escondidas, sem se revelar a seu parceiro. Ela chega mesmo a conseguir emprego numa locadora de filmes, onde conhece um jovem com quem sai eventualmente.

Ela não se releva a seu “marido”, mas sai a passeios com o colega de trabalho?
Parece estranho, mas isso se explica. Percebemos logo em seguida que ela não o vê como um namorado ou coisa do tipo – ela está ciente de que é um objeto, “um substituto do amor verdadeiro”.

Explique.
Quando Hideo “conversa” com a boneca, seu interesse não é trocar ideias, mas simplesmente expressar-se, fingir que tem com quem conversar. Quando ele a leva para passear, seu intuito não é alegrar a boneca (como se alegra um ser inanimado?), mas simplesmente satisfazer sua necessidade afetiva.

É verdade.
Além disso, ela descobre ter sido escolhida por se parecer com a ex-namorada do dono.

“Substituto do amor verdadeiro”
Afinal, ela é uma boneca.

Uma marionete.
Que nem o Pinóquio.

Pois é. Mas o Pinóquio em momento algum traça uma verdadeira reflexão existencial.
Tem uma cena de que eu gosto muito: num certo dia, ela se corta no trabalho e começa a vazar.

E o que acontece?
O colega de trabalho começa a assoprá-la. É uma cena muito sensual, de um intimismo profundo.

Bota intimismo nisso. Ele a preenche de ar, como se fosse um deus assoprando-lhe o espírito.
“La petite mort” torna-se “ la petite vie”.

Há mesmo essa insinuação no filme ?
Sim. Aliás, há três momentos de “insinuação” no filme: a cena da janta sem preposição, uma cena em que o chefe consegue o que quer por meio de uma chantagem e, a melhor de todas, esta.

Como o colega reage quando percebe estar diante de uma boneca?
Naturalmente. Sem nenhum estranhamento. Ele até confessa ser uma espécie de boneco inflável.

E de fato o é?
Não. Ele está falando em linguagem figurada, mas ela não percebe.

O filme parece valer-se de uma verossimilhança parecida com aquela que vemos em A metamorfose, de Franz Kafka.
Eis aí outra alegoria bastante aguda.

Falemos dela outro dia. Mas voltemos ao filme. Qual lhe parece ser a mensagem principal, a solidão?
Bem, não pretendo contar o desfecho, mas posso lhe dizer que um dos temas é a solidão. Todos são solitários: Hideo, a boneca, o colega de trabalho, o patrão repulsivo, outras personagens que aparecem eventualmente. No entanto, o mais importante é perceber: todos somos bonecas infláveis.

Todos somos?
Generalizei, mas você me entenderá. Nas relações humanas, muitas vezes rejeitamos adentrar nos problemas alheios. Abrimos mão de compreender as dores dos nossos amigos e fechamos nosso espírito a um convívio verdadeiramente humano.

O outro sempre é um alheio?
Esse aforismo cai bem. O outro só existe enquanto complementação da nossa própria existência. Não estamos dispostos a reconhecer no outro uma essência diferente da nossa. Queremos que o outro seja apenas o reflexo dos nossos próprios anseios.

Narcísico, não?
Bastante. É uma história extremamente dolorida.

Um ótimo exemplo do que uma fábula é capaz de criar.
Concordo.

Madrugada errante

O filme começa com o protagonista, quieto e solitário, caminhando pela mata. É madrugada, que simbolicamente sugere a expectativa de um novo dia, a alvorada – luzes iluminando a penumbra. Então ouvimos sua voz: ele começa a rezar. Monólogo individualista ou sagrado diálogo interior, a distinção pouco a pouco se reduz; a antítese esvai-se conforme crescem os questionamentos – alguém me escuta? Estou falando sozinho? Se Deus existe e se de fato ele nos deu livre-arbítrio, é sensato que ele se cale, que ele nos permita sofrer e enfrentar nossos próprios problemas mundanos. Mas por que nos colocar em situações em que a força do indivíduo pode tão pouco? Por que conceder uma liberdade de que quase não podemos usufruir?

 Só agora percebo: Jean Gentil ecoa os mesmos conflitos desenvolvidos por Dostoievski em “O Grande Inquisidor”. Em ambos os casos, mais do que aqui, a angústia soube se expressar.

O homem que sabia javanês – roteiro de leitura

A quem interessar, o conto pode ser encontrado nesta página.

As questões têm como objetivo (a) servir como roteiro de leitura, (b) estimular a capacidade de análise simbólica e (c) identificar determinados vícios da cultura brasileira.

 01)  O que seriam “as partidas que [Castelo] havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver”?

 02)  Você acha que Castelo teve alguma preparação técnica para exercer os cargos de “feiticeiro e adivinho”?

 03)  Quais são as duas críticas que Castro faz ao Brasil logo no começo da história?

 04)  Cite duas evidências de que Castelo passava por dificuldades financeiras no começo da história que ele está narrando.

 05)  Considerando que o “encarregado dos aluguéis dos cômodos” não era o proprietário, mas sim um mero funcionário, indique duas razões para que ele tenha se ‘esquecido’ de cobrar os aluguéis do Sr. Castelo.

 06)  Indique três (ou mais evidências) de que o doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz seja uma pessoa de posses.

 07)  Indique três (ou mais evidências) de que o poder financeiro do doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz está em decadência.

 08)  O que a seguinte descrição lhe sugere: “um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento”?

 09)  Indique uma evidência de que o avô do doutor Albernaz tenha sido uma pessoa importante.

 10)  Em sua opinião, o doutor Albernaz é um cético ou um supersticioso?

11)  Sabendo que os admiradores do professor de javanês não tinham motivo real para admirá-lo, por que você acha que eles o admiravam?

 12)  O doutor Albernaz lhe parece um homem dedicado e trabalhador?

 13)  No decorrer da história, é dito a Castelo que “seu físico não se presta”. O que está por trás dessa afirmação?

 14)  O que o seguinte trecho lhe diz: “Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas”?

 15)  Na página 57, há um trecho confuso “ofereceram-me um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos”. Quem afinal pagou o banquete que ofereceram a ele?

 16)  Em que ambiente / lugar Castelo conta a história a Castro?

 17)  Considerando as aventuras de Castelo e o lugar (ou a situação) em que a história é contada, você o classificaria como um trabalhador (aquele que se baseia na ordem) ou um aventureiro (aquele que se baseia na malandragem)?

 18)  A que posto / cargo público Castelo conseguiu chegar?

 19)  De que modo este conto pode ser compreendido como uma crítica ao Brasil?