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Chão

   No escuro do quarto, as pétalas de jasmim mantinham uma pequena lembrança do perfume de quando foram colhidas. Pensava nas estrelas já mortas em algum rincão da via láctea, estrelas que ainda sobreviviam imaculadas neste ou naquele ponto, quase invisível na imensidão noturna. Assim ela seria recordada, a cândida virgem que um dia se perdeu na escuridão da vida? Qual seria sua herança?

Encruzilhadas

   Aquele cheiro aguado antecipava o gosto-desgosto que estava por vir. Resolveu devolver o copo à mesa, na vã tentativa de se esquecer dos porquês que o levaram a ir àquele desconhecido bar na Consolação. A fumaça, visitante ilegal naquela paragem, lhe incomodava menos o olfato. Este era o preço, mas haveria mesmo uma recompensa? Logo iria saber; a imagem de Leine fazia-se notar na penumbra que iluminava o canto oposto do salão.

   “Os dias andam ásperos” – alguém falou, iniciando a conversa. “Ou talvez a aspereza pertença ao tato” – respondeu-se. E assim, aforismos seguidos de hipálages, ensaiou-se o diálogo.

*

   O sábado deixava o metrô das sete mais agradável. Sem aquelas pessoas comandadas pela agenda, pessoas sem finais de semana, pessoas sem ausências a serem preenchidas, era mais confortável abrigar-se ali. Mas, resquícios do cotidiano?, outros estranhos compartilhavam o espaço, invadiam-no, como se quisessem capturar um respingo de dignidade, algo que lhes desse sentido à vida mesquinha. Pobres coitados.

   Na verdade, não se importava com eles. Assim que a estação chegou, deixou-os no vagão, como se fossem não mais do que instrumentos para sua retórica, agora em busca de outro alvo, seja nas escadas-rolantes, na calçada, no bar – enfim, no bar. Ciente ou não, deu a seu rosto um ar de confiança pouco antes de avançar na fumarenta sala à qual se destinava. Lá estava ele com aquela cara de sempre, e agora também ela lá estava. Mais do que teses, ambos apreciavam antíteses, paradoxos, oximoros.

*

   Vadim levantara-se. Naquele boteco pseudonaif, só havia garçons na hora da gorjeta. Ri do modo como ele falava; aqueles trejeitos, longe de surpreender ou evocar uma nova masculinidade, mostrava o quanto ele ainda era pueril. Agora está lá falando com o suposto bartender, como se um dos dois entendesse qualquer coisa de bebidas. Garotos…

   Cá eu, sozinha, num hiato entre uma e outra relação, catando sobras de luz de uma penumbra qualquer, distraio-me com o jovem casal a meu lado. Ele, que pedira um copo de whisky para exibir maturidade – talvez a ele mesmo –, tenta disfarçar o suor das mãos. Ela, com seus gestos projetados, nem parece perceber o quanto é artificial. Mas, cada qual a seu modo, parece que o plano está dando certo. Ele a olha como a uma esfinge; ela sente que não mais o domina. Oaristos de um lado a outro. Em menos de cinco minutos, eles encontrarão seus caminhos. Mas não ficarão contentes com isso.

Um dia na vida de um copo de whisky virgem, nas prateleiras da adega

            Era estranho, estar ali ao lado de seres tão parecidos mas ao mesmo tempo tão diferentes. A luz que refratava por todos eles sugeria uma pureza enganadora, uma lucidez nublada por preconceitos mal disfarçados. Era o único ali a sentir-se isolado? O silêncio e a indiferença incomodavam mais do que um resmungo articulado por esta ou aquela teoria. Mas não. Só, solitário; o silêncio.

            Antes de parar ali, antes de parar em qualquer canto, segundo ouvira de uma voz perdida em algum meandro da memória, fora diversos grãos que nem sempre estiveram juntos, mas livres, abandonados ao acaso e aos dissabores da maré. Um dia, porém, o bafo quente de algum deus uniu aqueles grãos todos numa espécie de goma plástica – ou, melhor dizendo: vítrea – dando-lhe a forma irregular que talvez tanto lhe incomodava. Suposições e certezas às vezes se confundem.

            Agora ali, olhando ao lado, percebia diversos seres semelhantes a si. Todos eles também formados a partir de diversos grãos fundidos numa mesma goma vítrea, todos eles criados pelo mesmo e divino bafo incandescente, mas ao mesmo tempo cada um deles quieto, indiferente ao outro. A saudade de uma voz que decerto nunca existiu lhe atiçava e consumia as esperanças. Tentava entender seus vizinhos, como cada um deles refletia a própria existência cilíndrica, a essência vitriolizada, o ser enquanto copo ou taça. Dizia-se que algum dia, todos eles retornariam ao pó, aos pequenos grãos de areia que se espalham pelas praias, pelos leitos ou mesmo pelo chão. Há também a hipótese da permanência, os vitrais, mas isso pouco lhe importava. O que fora ou o que seja lhe pareciam variações da mesma abstração, pois ali, ao lado e isolado de seus pares, sentia-se ímpar, ao lado de diversas criaturas tão ímpares quanto ele, criaturas que talvez tivessem a mesma inquietação, mas por algum motivo impossibilitadas de lhe estender a voz, todas fadadas ao mesmo silêncio.