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Dos prazeres momentâneos

    Se só existe o presente, passado e futuro seriam meramente recapitulações e projeções – esse é o senso comum pós-moderno que Joca Vieira pretende desafiar. No prefácio de seu livro de estreia, Amendoado, ele propõe que o presente, sem suas descontínuas recaptulações e projeções, tenderia à infértil tautologia chão-chão. Só a abstração nos salva de ser quem fomos, só ela nos permite ser quem seremos.
    A ideia não é nova. Mas Vieira não a pretende original – a originalidade seria um mero deleite estético, tão belo e infrutífero quanto o amor homossexual, para usarmos uma de suas complicadas imagens. O ponto de partida é o pseudo pragmatismo dos livros de auto-ajuda que nas duas últimas décadas parecem ocupar o quinhão de espiritualidade a que precisamos recorrer quando o sucesso não nos quer agarrar. “Antigamente rezávamos em busca de inquietação, agora pedimos conforto e segurança” – diz o poeta, aparentemente acreditando no que diz.
    Quem viu sua entrevista ao Jô, quando se travestiu de vanguardista, exibindo  humor de baixo calão e trocadilhos infames, tomaria um susto ao folhear os poemas. É difícil vislumbrar qualquer preocupação em dialogar com os livros de auto-ajuda – justamente porque os leitores de auto-ajuda não estão acostumados a construções que beiram o surreal – ou o subreal, como ele gosta de dizer. Nesse sentido, o livro surpreende ao oferecer momentos quase aforísticos como “Na coleira do destino” (Mas eu não vi quem o domava) ou em um ou outro epigrama (quase o vi passar/ quando/ o vi voltar).
   Mas por outro lado, Amendoado é uma bela tentativa de deleite estético – não é o fruto que justifica o gozo. Talvez seu jogo seja justamente este: dar as bases para sua própria recusa, como se quisesse nos ensinar a dizer não. Como se o único jeito de conquistar nossa paixão fosse abrindo mão do nosso amor.
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Só,  na sacada vã
em que os pensamentos fingem habitar,
sentia o conforto amplo e passageiro
de ser o que se está; pois é só isso que somos.
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Matando o tempo

Grata surpresa: descobri uma boa opção cultural para as noites de quarta e sexta, a Mostra Internacional de Cinema na [TV] Cultura, com frutos oriundos da Dinamarca, Irã, Argentina, Áustria, entre outros. Sei que é possível variar o cardápio sem sair das produções norte-americanas, mas também sei que os cinemas dos recônditos podem trazer sabores inusitados e, por que não?, aprazíveis – às vezes nem isso nem aquilo, mas, enfim, o paladar foi feito para ser testado.

Meu Irmão Quer se Matar aka Wilbur Wants To Kill Himself (Lone Scherfig / 2002 / Dinamarca, Inglaterra, Suécia, França) conta a história de Wilbur, um insistente suicida em potencial, já famoso por suas tentativas frustradas de dar cabo à própria vida. O filme começa com Wilbur tentando se matar: ele fecha as janelas do apartamento, reduzindo assim a ventilação, depois ele liga o gás, que em minutos o envenenaria. Tudo pronto, basta despedir-se do irmão. Então Wilbur telefona a Harbour, tentando contar-lhe o porquê desse estranho desejo. Harbour, porém, em vez de ouvir as explicações filosóficas do caçula, prefere correr até o apartamento deste para tentar – e conseguir – salvar-lhe a vida.

Não foi a primeira, nem seria a última vez. As tentativas de suicídio são uma rotina na vida de Wilbur, e como tal banalizaram-se. Fora o irmão, ninguém mais se impressiona ou se importa. Órfão de pai e mãe que o tinham como predileto, sem amigos, sem namorada, sem nenhum interesse específico pela vida, Wilbur é um egoísta. Não, não foi um lapso. Não quis dizer niilista, você leu certo: Wilbur é um egoísta. Eis o tema do filme.

O par antitético de Wilbur é justamente seu irmão. Harbour, o primogênito, cresceu à margem do caçula, acostumando-se desde cedo a ser o coadjuvante. Preterido pela mãe, preterido pelo pai, preterido por si mesmo. Por isso ele nem se incomoda quando suspeita que sua esposa está  tendo um affair com Wilbur – nunca o vi tão feliz.

Em meio a personagens egocêntricos, Wilbur, Alice (a esposa), Horst (o médico), Harbour pode até se passar por altruísta. No entanto, a verdade é que em nada ele lembra os comoventes e heróicos seres que habitam os filmes de John Ford. Se em As vinhas da ira, Como era verde o meu vale ou em O jovem Lincoln, há de um modo ou outro um admirável desapego material, aqui o que temos é um ególatra às avessas, um egoísta que cultiva o ego de outra pessoa. Nem Wilbur nem Harbour são admiráveis. A prova definitiva, para quem a exige: Harbour é enterrado numa cova sem lápide, sem nada que o identifique, sem nada que preste a lhe preservar a memória, um túmulo isolado, invisível, como se feito para o esquecimento, como se feito para condenar um suicida.[1]

 


[1] Platão. Leis IX, 873 C2-D8, in Fernando Rey Puente, Os filósofos e o suicídio.

Recados ao futuro

 Na pior das hipóteses, escrevemos para nós mesmos. E isso nem é de todo ruim, pelo contrário.

 A escrita, inda que truncada, inda que trôpega, inda que ambivalente, pode revelar traços de uma personalidade que, justamente por ser truncada trôpega ambivalente (sem as vírgulas!) às vezes deixamos para trás, esquecidas perdidas para sempre, para o inconsciente sombrio que nos mina em vez de nos rimar.

 Nossos textos não precisam sempre ter uma lógica externa, uma regra mandato a que tenha de seguir a que tenha de imitar; nossos textos podem ser aquilo que nós somos no momento, com as preciosas imperfeições que um dia se revelarão mais autênticas e verdadeiras que qualquer estrutura lógica que não compreendemos devidamente.

 As estruturas devem nos apoiar, não nos conduzir.

 Precisamos aprender a caminhar com nossas próprias pernas.

 Às vezes surgem tantos assuntos para tão pouco texto.

 Não importa. Escreva mesmo assim. Se você é jovem como o Samuel, que acabou de criar um blog no qual está depositando diversas ideias e impressões, faça como ele: não se preocupe excessivamente com vírgulas mal empregadas ou com a forma incorreta do verbo “ver” no futuro do subjuntivo. Tudo isso pode ser corrigido, claro. Por isso menos, tudo isso tem uma importância menor por enquanto.

 Não que o texto tenha de ser relaxado, não que devamos buscar a forma preguiçosa q vc axa por ae…

 Mas não usemos um pequeno erro para encobrir uma grande virtude.

 Jovens, mãos à massa!

Desconexões

Sábado, 23 de Outubro. Aproveitei as poucas horas de folga que teria no final de semana para passear com minha esposa pela região oeste da Paulista, ali onde os cinemas costumam oferecer opções além dos juvenilizantes.

 Jovens, envelheçam! – Nelson Rodrigues.

 Ela havia acabado de assistir a uma entusiasmante palestra no MASP (Adolescência Hoje), e se aproveitou da minha presença para decantar as inúmeras ideias que o psicanalista Joel Birman compartilhou naquela tarde. O compromisso do indivíduo com si próprio, as etapas do amadurecimento, o amadurecimento em si, isso soa tão conservador e ultrapassado que já não causa mais tanta surpresa ver inversões de valores sendo consideradas meros atos de rebeldia e liberdade.

 O próprio MASP, erguido sei lá quantos metros acima do nível da rua, deveria simbolizar uma alternativa ao vulgar. No entanto, mais de uma vez, tivemos de compartilhar orquestras de câmara, exposições e palestras com pessoas que deveriam ter ficado em casa assistindo à Zorra Total.  Há algo de egocêntrico e infantil naqueles que insistem em ir a uma palestra (ou a um cinema) para balbuciar com a pessoa ao lado em vez de permitir que o público possa curtir o evento. Se pensarmos que isso voltou a se repetir numa palestra sobre o comportamento insistentemente imaturo da sociedade moderna, até fica engraçado. Teria sido proposital?

 Há criaturas que chegam aos cinqüenta sem nunca passar dos quinze. – Machado de Assis.

O curioso é notar a quantidade de alternativas de que o jovem dispõe atualmente para amadurecer mais rapidamente. É inevitável pensarmos na internet, monumento das contradições, onde exibicionismo e anonimato, solidão e companhia, quase chegam a se fundir. É outro, porém, o par antitético que me interessa: a internet também é lugar de cultura e dissipação. Se nos lembrarmos de que cultura é também uma forma de dissipação (o indivíduo precisa sair de onde está para conhecer outros lugares), a condução do problema afligirá menos. A questão, como sempre, é reconhecer a existência de infinitos meios-termos, mas não se contentar passivamente com um lugar qualquer entre os dois pólos. Como fazer isso? Como saber se o ponto em que estamos denota conhecimento adquirido ou estagnação mental? Exatamente assim. Questionando-se. O amadurecimento não é uma fórmula pré-fabricada.

Quando leio um livro, fico 5% mais inteligente e 95% mais ignorante. – Millor Fernandes.
(citado de memória – ou de esquecimento)

O grande inquisidor

Amanhã vou assistir novamente a peça O grande inquisidor (adaptação do capítulo homônimo de Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski), no teatro Ágora. Um pequeno resumo, para quem não conhece a história:

 Sevilha, século XVI, época áurea da Inquisição; época em que as fogueiras se alimentavam dos corpos impuros dos hereges. Surge um homem a quem os fiéis reconhecem como o cristo redivivo. Após  fazer truques baratos para impressionar o populacho – ressuscitar uma criança, curar um cego, essas mesquinharias… – o barbudo balzaquiano foi mandado atrás das grades por ordem do Cardeal (este sim com inicial maiúscula), o qual se tornou o responsável por inquirir do artista mambembe o segredo por trás de seus truques.

 Eis que começa a peça, o grande e privativo interrogatório em que o Cardeal fala e o pretenso cristo cala. Isso mesmo. Sinal de submissão ou de superioridade, o barbudo andante nada diz a peça toda. Apenas o Cardeal controla a palavra – e que palavra! Poucos artistas tratam tão bem o verbo quanto Celso Frateschi. Conheci-o ano passado no monólogo Sonho de um homem ridículo, e já fiquei impressionado. A título de comparação, mesmo numa peça de boa qualidade como Agreste, com artistas de grande capacidade como Joca Andreazza, a sensação não é a mesma; sua voz máscula e rija não alcança a suavidade que o papel exige – por isso ele se dá muito melhor em Anatomia Frozen; imagine então levar os ouvidos para degustarem o insosso Rodrigo Lombardi, na regular A grande volta, é  – no mínimo – decepcionante. Enfim, voltemos ao que interessa.

 A peça trata da liberdade, dádiva ou maldição?, que cristo legou à humanidade. Parece um texto ateu, no sentido em que todo o discurso do Cardeal parece remeter à ditadura cristã,  mas não custa lembrar que Dostoiévski era um cristão – um cristão heterodoxo, é verdade, do naipe de um Nelson Rodrigues, aquele que dizia gostar da religião, mas não gostar de religiosos. Eu, pessoalmente, simpatizo-me com esse tipo de conduta. Certa vez percebi que os judeus que eu mais admiro são justamente os não religiosos: Chaplin, Grouxo, Wood Allen, fora um antigo professor da faculdade que, se não me fazia rir como os outros três, foi-me mais importante que o resto da lista. E eis que o texto parece empacar – mas não é acidental, tenho pudor em contar mais do que o necessário; a peça ainda está em cartaz e – ao lado de In on it – é daquelas que eu faço questão de rever. Para terminar:

Aparentemente, O grande inquisidor é um monólogo, visto que apenas Celso Frateschi, o inquisidor, faz uso da voz; Mauro Schames, o cristo reencarnado, só emite o próprio calar. E isso basta. Pouco a pouco, a fala do Cardeal vai apresentando e defendendo seus argumentos ao mesmo tempo em que, à moda dos grandes narradores machadianos, eles revelam o triste segredo guardado sob a máscara dos dogmas. Não por acaso, no final da peça, acusador e acusado trocam de lugares. Quando uma regra se torna mais importante do que o ideal que lhe deu vida, é imprescindível que a burlemos.

 Parece-me normal que muitos cristãos reclamem, mas creio que muitos outros ficarão felizes em ver (rever) a grande lição de liberdade, sempre ligada aos grandes homens.

 Real ou mito, desde que a lição seja apreendida, pouco importa.

Jardins da infância

 Acabei de assistir a O pequeno Nicolau (Le petit Nicolas), adaptação cinematográfica das tirinhas homônimas de Jean-Jacques Sempé, aquele mesmo do simpático Marcelino Pedregulho, lançado no Brasil pela Cosac Naify. O filme retrata o cotidiano de Nicolau e seus amigos de escola por meio de divertidos esquetes – sequências cômicas de curta duração, no mesmo estilo de filmes como A levada da breca (Bringing Up Baby), em que Howard Hawks explora as lindas caras e bocas da talentosa Katharine Hepburn (quatro óscars, que mulher!)  

 Se é verdade que O pequeno Nicolau não tem nenhum colírio do mesmo naipe, ao menos nos faz lembrar de uma época em que nossos olhos sorriam por outros motivos. A infância, aquele período pré-sexualidade, de que tantas crianças insistem em fugir, recebe um tratamento bastante afetivo. Sim, os personagens são meio caricaturais, mas qual criança não o é? O aluno cdf, o aluno desatento, o aluno brigão, o aluno rico não estão lá para compor um quadro dramático em que suas almas serão investigadas à luz da psicanálise, da pedagogia ou de outra ciência da moda, eles são paradigmas de um ambiente que cada um de nós já viveu, literal ou ficcionalmente; os mais felizes encontrarão ecos de uma infância colorida, os outros se lembrarão dos filmes vespertinos da seção da tarde ou do similar essebetiano.

 Se não é um filme que vai marcar nossas vidas, ao menos ele pode nos lembrar de como já fomos felizes e – por que não? – nos convidar a recuperar alegrias passadas. Não, não disse que o filme  funciona como auto-ajuda (na verdade, ele sequer tangencia o assunto), mas quem vai ao cinema com medo de se emocionar perde dinheiro e tempo – e este, como o filme insiste em nos sugerir, é algo que não deveríamos desperdiçar.

P.S.: Assim como em Sherlock Holmes, confesso que o trailler não é nem um pouco animador.

Philip Morris

Minha esposa e eu aproveitamos o feriado da Parada Gay para assistir I love you, Phillip Morris (estranhamente traduzido como “o golpista do ano”) no Shopping Paulista – lugar cheio de filmes “blockbósters” e adolescentes barulhentos. Para quem não sabe, trata-se da história de “Steven Russell, policial e pai de família, que abandona os princípios convencionais impostos pela sociedade para viver luxuosamente sua homossexualidade”. O engraçado é que nem todo mundo havia lido a sinopse. Quando deu meia hora de filme, um casal de velhinhos começou a trocar olhares espantados quando o protagonista saiu do armário; logo após uma troca de beijos entre Jim Carrey e Rodrigo Santoro, o casal saiu da sala. Dez minutos depois foi a vez de um grupinho de adolescentes, agora calados, sair de fininho. Ao longo do filme, uns saíram, outros ficaram demonstrando em voz alta sua repugnância com as cenas de amor homo.

Quem aqui frequenta sabe que eu gosto de observar os expectadores. Semana passada, aliás, fui ao Teatro do SESC Consolação assistir a Policarpo Quaresma, peça de Antunes Filho, adaptada do romance de Lima Barreto. Como você sabe, nesse livro, um dos intuitos do autor era desmascarar o ufanismo nacional; a história toda é marcada pela quebra de expectativas. Para minha sorte, na segunda vez em que fui ver a peça, consegui um bom lugar, na primeira fileira. Para meu azar, logo atrás de mim havia um casal de maritacas. Comentários extremamente oportunos como “que atriz feia!” (em relação à moça que foi abandonada pelo noivo nas vésperas do casamento) e “credo!” (em relação ao ator gordo e negro vestido de mulher) me espantaram pela pertinência e sagacidade. Quando, no fim da peça, logo após os guardas da prisão colocarem um capuz preto na cabeça do protagonista, a mocinha do banco de trás se superou: “acho que ele vai morrer!” – quase me virei para aplaudi-la! Os amigos me seguraram, tentando me convencer de que eram atores minuciosamente treinados para nos transmitir subliminarmente o seguinte recado: até mesmo nosso público culto é essa escória aí que você está vendo; não idealize o Brasil, não se empolgue com os brasileiros.

Bom, melhor voltar para o filme de ontem. O trecho final do parágrafo anterior até parece ter sido escrito pelo Diogo Mainardi.

A apresentação dos personagens é bastante esquemática: Russell é policial, homem de família e cristão, uma trinca de valores do mais tradicional conservadorismo. No entanto, conforme seu cotidiano é apresentado, duas pistas são reveladas: seus olhares para o modo banalizado com que a esposa entoa suas rezas; o modo mecânico e artificial com que eles exercitam-se na cama. Logo em seguida, em oposição a essas imagens, teremos uma cena de “amor” brutal e cheia de energia com outro homem e a rebeldia contra Deus (que lembra um pouco uma cena de Forest Gump, quando durante uma tempestade, o tenente Dan Taylor esbraveja contra o todo poderoso).

De resto, em resumo: Assim que Russel decide viver como gay, ele percebe que isso lhe exigirá um maior poder financeiro, desse modo ele se torna um golpista compulsivo. Sua destra habilidade, seu raciocínio lógico e os oportunos golpes de sorte com que conta, tudo isso lembra marcantes filmes de ação da linha 007 e afins. Seu relacionamento afetivo com Phillip Morris (o competente Ewan McGregor, que conseguiu construir um personagem empático, frágil e doce, em completa harmonia com o papel) tem lances de humor e sensibilidade; o filme tenta passar da comédia romântica ao drama com certa leveza, mas peca em alguns pontos fundamentais.

 

Minha esposa crê que algumas escolhas do filme estimulam a manutenção do preconceito e da discriminação contra os gays. Por exemplo: quando se diz que ser gay custa caro, estes- são diretamente associados a uma vida de afetação e aparências; as cenas de insinuação sexual parecem excessivas e, assim, despropositadas, como se dessem a entender que o homossexualismo se classifica melhor como uma tara sexual do que como uma relação afetiva.

Também é verdade que Jim Carrey se perde um pouco com suas caretas e canastrices, mas desconfio de que a má atuação possa ter sido proposital. O ponto alto do filme é aquele que antecede o grande anticlímax, momento este em que Russell articula seu mais convincente golpe – talvez aquele que se lhe mostrou o mais importante de todos. Não direi mais para não estragar a surpresa.

Enfim, trata-se de um filme irregular (note que irregular não significa necessariamente ruim) que mescla diversos gêneros: uma comédia romântica com tempero excessivo; uma aventura cativante e envolvente; um drama que poderia ter sido mais valorizado.

P.S.: antes que alguém diga haver mensagem subliminar no título em inglês, afirmo: saí do cinema sem a mínima vontade de acender um cigarro.

Chico Xavier – um ensaio sobre a tolerância

Uma pessoa que merece minha consideração pediu-me que visse o filme do Chico Xavier. E lá fomos eu e minha esposa ao Bristol hoje no começo da tarde.

Para começar, uma chateação: a fila estava muito grande – umas quinze, vinte pessoas. Mas o pior era o descaso na bilheteria: havia apenas um casal de atendentes trabalhando, sendo que apenas um de fato atendia – a moça contava dinheiro. Como faltava menos de 5 minutos para começar o filme, pareceu-me falta de bom senso da rapariga executar este trabalho justamente naquele momento. Mas quem sou eu para criticar o que ela estava fazendo? Até pensei em considerar a necessidade emergente de ela separar notas em bolinhos em vez de atender ao público, mas tive de interromper minhas divagações quando percebi que mesmo quando ela começou a atender pouca diferença fez – o rapaz era três vezes mais rápido que ela. Quando estava quase chegando a minha vez, uma simpática funcionária avisou com considerável atraso a possibilidade de comprarmos os ingressos no andar de cima.

Ora (direis) vamos ao filme, isso que importa! Ok… apressamo-nos, nem vimos aquelas propagandas sobre a qualidade do áudio ou da imagem, chegamos à sala pouco antes de começar a sessão, mas a tempo de perceber que a tela tremia um pouco – quase imperceptível a olho nu, eu diria, se as pessoas em volta, quase todas, não reclamassem do mesmo problema.

Enfim, com um ou dois parágrafos de atraso, espero enfim falar do filme propriamente dito. Não há como negar que eu estava muito ansioso para saber como o diretor (Daniel Filho) exporia um personagem, um assunto tão polêmico. Meu receio era ver uma palhaçada como aquela em Avatar, quando a moribunda doutora, símbolo do cetismo científico, vê a deusa da floresta e joga na cara de todos os ateus como estes são paranoicos em não acreditar nas forças espirituais. Não tenho paciência para obras moralistas, que tentam impor sua crença de forma imperativa como se o público fosse imbecil. Para minha felicidade, porém, o filme brasileiro mostrou-se muito mais inteligente e dialético que o americano.

Chico Xavier é retratado desde o início como uma pessoa tolerante, que busca respostas para harmonizar o convívio humano. A amizade dele com o padre Scarzelo (Pedro Paulo Rangel) é tocante tanto no plano material (as broncas afetivas, o abraço de despedida) quanto ideológico (a tolerância e a compreensão, de ambas as partes, de que a religião é menos importante do que aquilo a que ela etimologicamente nos liga). Sua família é apresentada tanto pelos defeitos (a violenta madrinha, o ganancioso pai) quanto pelas virtudes (o amor do irmão e o afeto da madrasta), o que lhe dá um caráter mais humano e verdadeiro do que se ela fosse animalizada ou idealizada. E, falando em defeitos, o próprio Chico não escapa a eles: era vaidoso a ponto de usar peruca e sentia medo da morte (o episódio do avião é engraçadíssimo). Mas, claro, suas virtudes é que são ressaltadas.

Surpreendeu-me a coragem de Daniel Filho em trazer às telas até mesmo uma insinuação à pretensa homossexualidade do biografado. Logo quando o programa de TV começa, o assistente de edição (será isso mesmo?) parodia uma antiga marchinha carnavalesca: “Chico Xavier, será que ele é?”. Posso estar imaginando coisas, mas quando o famoso médium pergunta “seria o sexo, em suas várias manifestações, sentenciado às trevas?” , parece-me sugerir um nível de tolerância raramente encontrado nos discursos de outros líderes religiosos. Numa sociedade machista como a nossa, em que basta alguém respeitar os gays para ser visto como um, tal postura é digna de admiração. O mesmo não se pode dizer do roqueiro-carioca-amigo-do-Jô que criou uma música cujo refrão é nada mais nada menos que uma invasão à intimidade de Chico Xavier e de outra personalidade brasileira – a alguém que se pretende tão rebelde, sua postura lembra um Big Brother às avessas.

Não é só no aspecto ideológico, digamos assim, que o filme me agradou. Duas ou três imagens, especialmente, alegraram minhas retinas. A primeira quando o Chico-criança corre em direção à igreja: o sol, a 45º, projeta uma sombra que a grua focaliza nitidamente, como se fosse um duplo do garoto correndo a seu lado. A segunda é quando a câmera desce, e pelas frestas do telhado da casa vemos a luz laranja da vela que iluminava a leitura do menino. A cena aérea da casa surgindo atrás do morro, a corrida por entre as árvores, talvez sejam outras a serem lembradas. A única coisa que me incomodou foi o grão grosso de muitas cenas que fez a imagem se assimilar à de um DVD pirata (mas talvez isso tenha sido um problema da sala em que eu estava, visto que – como disse lá atrás – a tela tremia).

Sim, o filme me agradou. E você, leitor, desde que você não veja o espiritismo como uma seita demoníaca, talvez goste também. Só não recomendo ir à mesma sala que eu fui, a não ser que você seja super-dotado em tolerância.

***

P.S.: O único momento em que eu temi uma “derrapada” foi quando um espírito disse que ele, Chico, era a pessoa mais especial do mundo – tive de aceitar, afinal era sua mãe que lhe falava (e você sabe como são as mães…).

Simples, sem ser simplista

Li que uma das virtudes de Avatar seria a simplicidade com que o filme trata temas importantes como degradação ambiental, respeito à natureza, ética científica etc, tornando-o mais acessível ao grande público. Concordo com quase tudo isso: de fato James Cameron fez um filme simplista e facilitador, atingindo assim um grande público (e coincidentemente uma grande bilheteria), sem, no entanto, entrar nos complicados meandros argumentativos que poderiam incomodar o espectador (com S mesmo) mais inculto. Só não concordo que isso seja uma virtude.

 Por outro lado, isso não significa que um grande filme tenha de ser obscuro e hermético (“A clareza é a cortesia do filósofo”, Goethe). Na última semana vi dois filmes de John Ford que ilustram muito bem esta tese.

 O enredo de Como era verde o meu vale (How green was my valley), de 1939, é simples. Através das memórias infanto-juvenis do sexagenário narrador, somos levados a uma pequena cidade mineradora do País de Gales, onde assistimos a diversos episódios em torno de sua família: o trabalho na mina de carvão e o pó que se impregna para sempre na pele (uma imagem daquelas que nos acompanham a vida toda), o casamento do irmão e a descoberta ingênua do sexo oposto, a exploração do proprietário e a tentativa de greve, a chegada de um jovem pastor e o affair entre ele e a irmã, que posteriormente se vê obrigada a casar com o filho do dono da mina…

 Por meio desses e de outros episódios, vamos conhecendo os familiares. Os pais são apresentados do modo mais caricato possível: ele, o cérebro, ela, o coração. No entanto, não se vê o esquema machista de um BlackBoard Jungle que foi feito década e meia depois! Ainda que ele seja o cérebro, nem sempre suas decisões são movidas pela razão e nem tudo que ela pensa é meramente emotivo e passional. Melhor assim, as pessoas de verdade são complexas e imperfeitas.

 Do mesmo modo, articula-se o debate entre pai e filhos, estes influenciados por um pensamento comunista, de luta em prol do oprimido; aquele conservador, crente em valores antigos como dignidade e correção. A briga familiar só se resolve quando o pastor recebe a palavra e propõe aos trabalhadores uma luta – argumentativa e honesta – pelos seus direitos. Eis a síntese! John Ford recusa a hipocrisia conservadora de muitos religiosos, sem abrir mão dos princípios cristãos, John Ford recusa a violência esquerdista, sem abrir mão dos princípios de justiça e respeito ao indivíduo. Acho que li em algum lugar que John Ford (ou teria sido Clint Eastwood?) seria o mais democrata dos republicanos. Bobagem (não importa a quem a frase se dirige). Não dá para caracterizá-lo[s] com um adjetivo simplista ou binário. Ainda bem.

 Quem vir o filme perceberá que à medida que há um distanciamento entre as personagens e o narrador, elas são mais estereotipadas. Longe de ser um defeito, trata-se da coisa mais sensata do mundo. Como o garoto poderia recriar profundamente a psicologia de quem ele mal conheceu? Os estranhos sempre nos são uma caricatura, oras!

 Falarei pouco de A mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln), 1941. Trata-se de outro filme que nos conquista pelo afeto (seria possível não se apaixonar pela atmosfera fordiana?). Pode-se dizer que ele seja esquemático, previsível, mas ao contrário de Avatar parece-me que ele defende ideais absolutos, o que tornaria o didatismo não só perdoável como digno de elogio – lembremos de que o filme foi feito sete décadas atrás.

 Luiz Carlos Merten, num livro que eu não canso de reler, afirma que o diretor se preocupa menos com a verdade histórica do que com o papel simbólico que a história pode desempenhar. Ford seria então um criador de mitos, um Homero. Por isso talvez sua grande capacidade de criar imagens que nos ficam no coração sem nos ofender o cérebro. Simples assim.

Mal servido

Sócrates me fez ir ao teatro. Pegar ônibus num dia quente e chuvoso. Ficar na fila mal organizada num dia quente e chuvoso. Tomar a suja chuva paulistana num dia quente e chuvoso. Mas Sócrates vale a pena. Assistir à dialética em ação – discussões, ideias em polvorosa – não abriria mão disso tudo. Foi isso, e não os comes e bebes, que me levou a ver a encenação de O Banquete pelo Teatro Oficina em fins de dezembro.

A decepção não poderia ser maior; a peça já começa concluída: os argumentos cederam lugar à pura exposição de um ponto de vista – o elogio ao amar, verbo intransitivo; não importa o quê, não importa a quem. Contra a conclusão em si, nada tenho, filosoficamente falando. O problema é chegar a ela sem o devido debate, a desejada discussão (Caricaturar o oponente como um fanático fundamentalista cristão – acreditem em mim, chegaram a esse nível – possui a mesma graça que as piadas em que os comunistas são retratados como comedores de criancinhas; esse tipo de humor rasteiro combina mais com a erística do que com a dialética).

 Moralmente falando, não vejo nada contra a excessiva exposição de nudez. Mas não posso concordar com quem vê nisso uma forma de contestação, um modo de sacudir o público. Talvez isso funcionasse se a plateia fosse constituída por velhotas saídas do convento, mas ao público de mente adolescente, já acostumado com novelas e zorras totais da vida, a nudez lhe serve mais de estímulo corpóreo que intelectual. Não por acaso, o vinho servido ao público é leve e suave, fácil de beber, muito adequado a paladares imaturos[1]. Se isso foi uma ironia proposital, ponto para o Zé Celso!

 Infelizmente, não deve ter sido. Infelizmente não conheci o Oficina da década de 1960, quando sua fama parece ter se construído / consolidado, mas a primeira impressão deste que aí está não poderia ser mais brochante.

 


[1] À parte de qualquer discussão artística, a Casa Valduga produz excelentes vinhos.