A noite já havia começado há horas…

Tiago M. F. (aluno do 9ºEF)

   A noite já havia começado há horas. Era uma noite como qualquer outra, de qualquer dia, de qualquer estação do ano, a frieza da escuridão tornava aquele pequeno cemitério no mio do campo uma fonte de medo e desespero. Terras já conhecidas e desfrutadas por mim havia muitas décadas, tudo parecia ocorrer natural e instintivamente, como a Mãe Natureza diria que deveria ser. Eu não poderia dizer, já que minha natureza se resumia àquele cemitério. Mas os anos apontaram que o planeta em que vivemos é uma esfera imensa, muito além do pouco que sei. Eu posso citar com clareza qualquer coisa que já havia acontecido naquele medonho parque mortífero, porém justamente nessa fria e desconfortável noite de outono, ocorreu algo de que com certeza não me esquecerei: um jovem, aparentemente um estudante bem sucedido, contradizia sua aparência respeitável pulando a cerca metálica do cemitério, logo ao meu lado, sem muita dificuldade. Ele se aproximou de um pequeno e insignificante túmulo que apenas apresentava uma lápide. Vi que seu estado emocional se modificou ao ler atento e silenciosamente o que estava escrito na sepultura da pessoa enterrada. Ele caiu em lágrimas, se agarrando à terra como se aquilo fosse trazer a morta (talvez sua amada) de volta à vida.

   Enquanto aquele jovem se ajoelhava no meio de tantos mortos, fiquei naquele intervalo de tempo ponderando o porquê daquela situação. Pessoas de sua idade eram menos frequentes em visitas rotineiras, o que me sugeriu que perdera uma pessoa amada em hora que, de certa forma, julgara incorreta. Apesar de a cena já ter sido, inicialmente, incomum, o que se seguiu foi ainda mais surpreendente do que uma visita noturna não permitida: o garoto retirou uma pequena pá de sua mochila e energicamente começou a cavar aquela terra fertilizada pelos restos dos mortos. Como se houvesse entrado em uma estória de terror, o vento violento que levantava as folhas que cobriam o gramado cessou subitamente, ao mesmo tempo em que o homem havia agora atingido o caixão que impulsivamente procurava.

   Em um reflexo quase involuntário, ele tirou o caixão do buraco com um movimento uniforme, pulando para fora logo em seguida. Mesmo com a minha experiência, nunca tive certeza do porquê de as pessoas enterrarem seus falecidos amados. Porém, de qualquer forma entendia que a fé era um superpoder oculto nas vidas humanas, o que as leva a fazer qualquer coisa.

   Voltando a atenção para o que se passava entre os dois corpos, separados um do outro pelo mesmo laço que separa a vida da morte, notei que o rapaz já não chorava nem parecia expressar sentimento algum. Lentamente, ele chegou à sua mochila e retirou um pequeno frasco de líquido cintilante. Eu não sabia suas intensões, mas imaginei que ele, a esta altura, apenas roubaria o corpo e fugiria dali sem deixar rastros; e a terra deixaria de aprisionar mais um ser infeliz, capturado pela madrasta morte.

   Apesar de isso fazer sentido segundo meu raciocínio, o que se passou foi diferente: o jovem devolveu cuidadosamente o corpo par ao caixão, devolvendo-o à cova. Mas ele não fechou a cova, nem o caixão. Para minha surpresa, entrou no caixão e ao lado de sua suposta amada, começou a enterrar o que pôde novamente de dentro da caixa funerária. Após isso acontecer, veio o grito que cessou o silêncio mórbido da noite. Compreendia o que acabara de ocorrer. Senti pena e ódio, ao mesmo tempo, daquele que acabava de acabar com a própria vida. Jamais saberia sua história e nunca entenderei sua missão na Terra. Mesmo porque, na minha condição, jamais conhecerei nenhuma história ou entenderei nenhuma vida senão as minhas próprias. O tempo me consumiria e consumiria tudo da mesma maneira como consumiu aquele rapaz. E não havia nada que eu pudesse fazer.

Sombra

Caroline Carvalho

 Neste mundo, seja aquela presença em quartos escuros, os barulhos em salas vazias, ou os súbitos movimentos ao canto dos olhos, habitam monstros. Criaturas das trevas, seus corpos nada além da vazia inexistência, que se escondem na escuridão. A essas criaturas damos o nome de Sombras.

 Há contos que remetem ao início dos tempos, quando a luz reinava sobre o planeta. Mesmo neste começo da história, as Sombras existiam, incapazes de interferir devido à falta de um corpo físico. Por muito tempo, os seres apenas existiam, sem oportunidade de agir. Mas esta situação mudou quando uma nova criatura surgiu. Os humanos, puros e bons, possuíam o poder de atuar na realidade que as Sombras tanto invejavam. Mas os humanos eram tolos e influenciáveis. Os seres do mal, amargurados pelos séculos de exílio, se aproveitaram da condição da humanidade. Lentamente a consumindo, sussurrando o ódio e a negatividade, as Sombras moldaram um mundo no qual poderiam agir livremente, por meio das ações humanas, um mundo dominado pelo medo. Mas os humanos, em sua ignorância, não percebem que estão sendo manipulados, e continuam agindo pelo que acham que é vontade própria. Ignorando as vozes. Ignorando os movimentos incorpóreos. Sem saber que estão sendo guiados, e não seguidos.

O silêncio reinante

Giulia Angelo

   O silêncio reinava no cômodo. Ninguém se mexia. Ninguém falava. Ao longe os gritos de alguns pacientes eram abafados pelas paredes opressoras. Se não fosse pela respiração descompassada de Maria e pela respiração pesada do médico; poderia dizer que o quarto estava vazio.

   A mulher se encontrava presa entre os tentáculos da poltrona sob o olhar frio e calculista do Dr. Cardoso.

   -Então, senhorita, mandou me chamar? – questionou o homem pausadamente. A mulher, assustada, hesitou por alguns instantes.

   -Si-sim… –respondeu gaguejando. Já fazia quase um ano desde que chegara aqui. Vultos passaram por ela, fazendo-a tremer da cabeça aos pés. Não causava brigas… comia tudo e tomava todos os medicamentos que as enfermeiras pediam… não tinha mais alucinações…

   -Tem certeza? –perguntou Cardoso arrastando-se nas sibilantes. Maria percebeu que a língua dele se semelhava a de uma cobra. Engoliu em seco e consentiu.

   -Quando chegou aqui, você pedia constantemente para telefonar para o seu “marido”. Algo a dizer sobre isso?

    A moça pensou um pouco – a lembrança das enfermeiras tentando acalmá-la para, logo em seguida, enfiarem-lhe os comprimidos goela abaixo.

   Ela estava desesperada e perdida. Não falava coisa com coisa. Agora sabia ter sido uma mentirosa. Aprendera a não contar mais mentiras. Sequer reparava nas aranhas que subiam pouco a pouco pelo seu braço, eriçando-lhe os pelos, submersas no branquíssimo pijama, insinuando-se lentamente até chegarem ao pescoço.

   -Bom, bom… –resmungou o homem escrevendo algo no papel à sua frente. –Entregue isto as guardas, por favor. – pediu destacando o papel e entregando-o a ela.

   Maria caminhou esperançosa até a porta, não ligando para as espirais que consumiam o quarto. Mais um pouco ela estaria livre. Já conseguia se ver lá fora, cercada de vida e liberdade. Cercada de pássaros, árvores e aromas. Não estaria livre de seus pensamentos e obsessões, mas não importa; encontrara a saída.

Presépio

        A varanda: o olhar mira a pequena horta que se perde ao descuido. Alheios, outros olhos veem as estrelas dançando nos céus. Da pequena horta pouco se colhe, um pouco pela ignorância, muito pelo desleixo. Vertem-lhe d’água à superfície, que a recebe como um rio caudaloso aos chuviscos da madrugada: finge absorvê-los, mas apenas leva-os ao distante lá. Cada vez menos força resta às raízes heroicas e moribundas.
        O olhar distrai-se da pequena horta, perdendo-se nas voltas da pequena estrada que lá adiante faz-se vista. A imagem duma carroça move-se longe, não tão longe, cada vez menos longe.
        E os olhos: os olhos continuam apaixonados, às estrelas testemunhando. O céu imenso: do céu muito se colhe, pouco se usa. A desgraça da horta, tão miúda, tão amaldiçoada, dela o mínimo se faz suficiente. O olhar se levanta, resignado, leva os passos à horta, encara-a. Os dentes espremem-se, os dedos se contraem. A jugular se incha e o olhar, o olhar mira os olhos que dos céus continua  absorvendo cada pouco que dele se pode absorver. Um grunhido animalesco chama a si os olhos, assustados e surpresos, olhos obedientes. O corpo é lançado ao chão sem mais pistas. Lançam-se pés e mãos à terra. Arranca-se um naco verde e murcho do chão. A lua, imensa e curiosa, ilumina os dois corpos, incomunicáveis, em mais um capítulo de revelação e surpresa. Espreme-se o vegetal colhido ao abdômen. Haraquiri bucólico, nada mais poderá salvá-los. Um abraço é tentado. Reconciliador ou desnecessário, não se pôde saber. A carroça – aquela mesma – fez-se presente, obrigando o casal a adentrar-se em seu presépio. Fecharam a porta tão rápido que nem perceberam o eclipse apagar as luzes daquela noite.

Escrevendo com a borracha – versão 2

       

        Letícia nunca falava sobre seus pais, sua família. Letícia nunca comemorava natal, ano novo, seu próprio aniversário. Às vezes era vista em festas alheias, quando se comportava fingindo ser uma pessoa normal, mas sempre suspeitava de que todo mundo percebia seu artificialismo. Provavelmente ninguém dava a mínima, afinal os outros também possuem suas vidas. Letícia adorava fluxo de consciência, discurso indireto livre e simular conversas. Sua mania favorita era, após um café, um encontro ou um simples encontrão, continuar a conversa que teve. Claro, só fazia isso quando os papos lhe provocavam algum tipo de inquietação, intelectual ou emocional. Era divertido, seus colegas diziam, quando ela compartilhava com eles uma ou outra sequência. Com o passar do tempo, porém, Letícia começou a sentir dificuldades em distinguir o que era lembranças, o que era apenas imaginação. Letícia gostava muito de conversar com si mesma em silêncio. Ela vivia se questionando, se questionava tanto que se sentia meio paranoica, embora soubesse que esse exercício mental era útil contra estagnações argumentativas, ao mesmo tempo as contra-argumentações sequenciais lhe pareciam uma forma sofisticada de imobilidade. Letícia se perguntava o que era. Ouviu certa vez com bastante interesse alguém lhe contar sobre a dualidade ser – querer ser. Talvez não tenha ouvido, talvez tenha projetado esse trecho de conversa, talvez apenas tenha desejado ouvir. A realidade, Letícia, importa menos que o sentido que damos a ela. Fato é que Letícia tinha dificuldades em olhar objetivamente para si, em fazer o doloroso percurso em busca daquilo que ela de fato quer, talvez porque Letícia tenha muito medo da subtração. Letícia é medrosa, ela sabe. Ela sabe que o raciocínio às vezes a leva para um lugar cômodo, em que ela se priva de pensar objetivamente nos seus dilemas. Letícia é repetitiva. Letícia é insistente. A realidade é dura; Letícia é feita de água.

*

Escrevendo com a borracha – versão 1

    

        Ao contrário do que o nome sugeria, Felício talvez não estivesse indo muito bem. Na verdade até atrapalhava. Quantas não foram as vezes em que os amigos diziam sorridentes que quando tudo ia mal só mesmo ele, Felício, era capaz de sorrir. E ele, para não chamar a atenção, consentia. Outras vezes, por causa do gato Félix da TV, diziam que ele faria o maior sucesso com as mulheres, caso não tivesse bafo de peixe. Não que houvesse alguma maldade nesse comentário; seu hálito nunca fora alvo de suspeitas desonrosas, seu suposto sucesso com as mulheres nunca fora notado. A bem da verdade, ele cultivou sim alguns relacionamentos, parece. Ninguém sabia muito da sua vida íntima. Deve-se respeitar a vida privada – principalmente daqueles que quase não apareciam no happy hour. Mas dizendo assim dá a impressão de que ele sempre fora isolado, o que não é verdade. Ele até que falava, falava bastante até, embora fosse raro vê-lo conversando com mais de duas pessoas ao mesmo tempo. E quando alguém falava dele, quase nunca se escapava dos eloquentes “ele é assim mesmo, é o jeito dele”.

        Certa vez recebemos um e-mail informando que o celular que ele usava estaria sendo desabilitado em 24 horas. Não sei se alguém lhe enviou alguma mensagem de despedida, mas alguns riram do gerundismo. Depois consta que seu e-mail também havia sido desativado. O primeiro a saber foi um funcionário do RH, o mesmo que veio nos contar – com duas semanas de atraso – que Felício não mais trabalhava na empresa. Essas coisas acontecem, a rotatividade é intensa, a fila anda, onde vamos almoçar?

        A maioria só achou estranho quando ele encerrou sua conta no Facebook.

        O pior de tudo é que ao procurar seu nome no Google, só foi possível encontrar informações genéricas de oito anos atrás. Talvez Felício esteja reescrevendo sua vida, ainda que à custa de borracha em vez de grafite.

        É o que espero.

*

Recebi uma carta

Cintia Mayumi

   Recebi uma carta… Estou distante de mim mesma, ela dizia. Parte de mim aqui, escrevendo. A outra parte, em algum lugar, por aí. Talvez por isso ao olhar-me no espelho me deparo com uma imagem borrada, como se o espelho estivesse sempre embaçado, a despeito do meu capricho em limpá-lo. Uma imagem sem contornos refletindo um eu sem contornos.

  Onde será que se encontram as minhas linhas? Minhas definições? Minhas luzes e sombras? Em algum lugar, por aí.   Busco ao meu redor, vejo muitas pessoas, formas nítidas que andam e circulam e correm e pulam à minha volta, saltam aos meus olhos com os seus contornos e cores marcantes… Nenhuma delas sou eu.

  Certa vez observei uma moça elegante, de cabelo preto e vestido vermelho. Queria tanto ser como ela… Então peguei uma caneta nanquim e um guache vermelho e desenhei-me, como ela.  Contornos pretos, grossos, davam dimensão à minha forma, enquanto o guache me preenchia de cor, me tornava atraente, marcante. Por algum tempo desfilei assim pelas ruas, pensando ter resolvido o meu problema, encontrado a minha forma.

  Um dia, enquanto passeava alegre e despreocupada, começou a chover muito forte… e pouco a pouco meus contornos foram escorrendo, minhas cores, se esvaindo. Voltei para casa correndo e chorando. Olhei-me no espelho e vi a mesma imagem borrada de antes, sem linhas, sem cores, sem sombras; triste por ter deixado de ser quem eu nunca fui. Procuro incansavelmente por mim mesma desde então.

  Já revirei o mundo nessa busca, sem sucesso. Só havia um lugar no mundo em que eu ainda não havia procurado. Um lugar escuro, de profundidade desconhecida, um lugar que ninguém nunca havia explorado, habitado por sei lá que tipos de sentimentos – eu mesma. Eis que agora busco por mim dentro de mim mesma. Vasculhando às cegas, cada escombro que tiro do lugar causa um ruído que ecoa e gera um certo desconforto. Mas prometi a mim mesma que não desistiria. Até agora, tudo o que encontrei foram alguns rastros, traços que me compõem e cores que me preenchem. Está tudo bem, estou no caminho certo.

  Descobri que não sou tão tímida e que sou um tanto ansiosa. Que gosto mesmo de cinema e que sempre quis aprender a tocar violão. Descobri também que escrevo para descobrir quem eu sou. Então, por favor, continue escrevendo, de algum lugar, por aqui.

brumático

O cheiro de barro ainda se encontrava em sua pele. O gosto telúrico, tão seu, não lhe saíra por completo da boca. Até mesmo suas mãos ressecadas guardavam ainda uma camada de pó, primeira pele. Se sentia tudo isso, se percebia a inabilidade em expressar esses sentimentos tão primordiais, não revelaria, pois padecia já do fado moderno da solidão. Cores, aromas, texturas, sons e sabores compunham então uma só coisa, gosto primevo. Gosto sem gosto, pois não compartilhado, não dito, sequer refletido.

É predominante em certa cultura masculina esse desejo, quase necessidade, de segurar o gozo como se os impulsos devessem ser freados; como se a suspensão do clímax acentuasse o prazer, como se o fremir pudesse se eternizar, como se não houvesse no prolongamento do coito outro agente, buscando não só o próprio prazer, mas também o grito alheio, o berro, o urro por todas as escolhas findadas, o alento de um quê de esperança, a vitalidade em sua desmedida unidade…

Gosto de sentir seus dedos se perderem nos meus cabelos. Gosto do modo como se atiçam sensações e lembranças. Seus dedos se multiplicam, deixam de pertencer apenas ao momento presente, ao estado concreto, tornam-se memórias e projeções. Sua substância se dissolve, verbaliza-se. Sim, é um elogio.

E de sua costela, e do oxigênio que se abrigava em seus pulmões, vieram Eva+Evo. Com ambos conheceu os contrastes e as antíteses do mundo. O gáudio derramado no chão; o fruir suspendido, mais ideia que fato. Evanescência eviterna? Infelizmente não compreendiam paradoxismos.

O prazer, quando visto como mera abstração, torna-se uma meta burocrática, desvencilhada da ação em si, como se a gestualidade fosse um mero instrumento e não um organismo já em desenvolvimento. O estar lançado às traças em nome do pode ser – daí a mecanicidade de um e a frigidez do outro.

Gosto quando você se esquece de que está aqui. Gosto do seu mero existir, irrefletido, irresponsável, egoísta sem ego, cúmplice integrado. Sem passado nem futuro, somente aqui.

Ao olhar para ela e para ele, ainda que saiba distingui-los, não consegue hierarquizá-los conforme gênero, beleza, encanto ou simpatia. Algo, uma consciência indevida talvez, lhe sugere que deve fazê-lo. Por que confiar num ser sem braços e pernas, quase que só pescoço?

Pois o gozo se associa à melancolia, o esparramar-se gera arrependimento e luto, como se após o findar não restasse nada, apenas dois indivíduos entregues à realidade da qual tentaram fugir.

Não tema, meu bem. Você acordou, mas o sonho ainda não se foi. Não tema, não pense no fim. Ainda não.