Existem diversas questões filosóficas. “Por quê?” Você me pergunta já exemplificando minha tese. A postura filosófica que mais aprecio é o gosto pelo saber daquele que não se acomoda perante frases e ideias alheias. O questionamento é a principal forma de nos opormos a ambientes massificadores e alienantes. Repare: quem de fato percebe a diferença entre uma opinião e um palpite? Entre um argumento e uma adjetivação? Dia desses uma amiga me perguntou o que eu estava ouvindo. Pensei em responder de cara o nome do músico gaúcho e deixar por encerrada a conversa. No entanto, tenho grandes dificuldades em manter um bate-papo meramente fático. Desejoso de algo menos superficial, resolvi investigar os motivos que me levaram a apreciar o músico que mais ando ouvindo ultimamente. E para isso, resolvi analisar Viajei, de Vítor Ramil (Mande abrir em outra janela para que você possa ouvir a música antes ou depois de ler a continuação do texto).
A canção é sintetizada já no primeiro verso, criando uma expectiva no ouvinte: viajou para onde? Para dentro de mim, responde o cancioneiro ao nos indicar o uso figurado do verbo; a polissemia se anuncia. O devaneio é uma espécie de viagem. Felizmente, porém, o autor encontrou meio mais poético de traduzir o que acabei de dizer linearmente. Repare no modo como ele intercala as aliterações das oclusivas com a assonância alternada das vogais abertas e fechadas: “Ligado num segundo / no seguinte, desliguei / do que ia dizer”. É como se a tensão provocada pela combinação entre oclusivas e nasais simbolizasse o constante alerta (tique-taque, tique-taque) de quem está “ligado” (Minha dica: pronuncie atentamente os versos, sinta o que estou dizendo), e a partir da metade da última sílaba de “desliguei” o indivíduo fosse se “desligando”. Foneticamente, isso é sugerid0 pelo prolongamento que se dá na pronúncia do Ei, Ia, Eêê, (“desliguEi do q’Ia dizÊee“) como se tivéssemos uma sucessão de ditongos decrescentes induzindo uma pronúncia vocálica deslizante e suave.
A segunda estrofe consegue manter o bom paralelismo entre som e sentido. Primeiramente, temos o trocadilho Divaguei / Devagarinho, o qual sugere uma repetição que não acontece, eis que somos iludidos pelo cantar. Na sequência, a assonância nasal parece conduzir o devaneio: “Devagarinho, evoluindo / Num carinho teu”. E a alternância binária de átonas e tônicas “perDIdo a ME perDER“, além de retomar “do que eu ia dizer”, parece anunciar o movimento certeiro que se verá na sequência: em “MAR aDENtro, NOIte aFOra / aGOra, aMOR” há o desenho fonético da onda do mar, como se estivéssemos num barco cruzando as ondas; esta é nossa viagem.
Há outros traços significativos na canção, mas deixemos o didatismo de lado. Como cantou Camões, “melhor é experimentá-lo que julgá-lo”.
p.s.: ganha um doce quem primeiro metrificar corretamente o verso camoniano.
Canto IX de Lusíadas, Ilha dos amores:
Oh, que famintos beijos na floresta!
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Todos os versos de Lusíadas são decassílabos, sendo assim, a métrica do penúltimo verso não poderia ser diferente:
Me lhor éex peri men tá lo que jul gá
Lembrem-se sempre de que, ao metrificar, devemos levar em conta a pronúncia, e não somente as divisões silábicas tradicionais das palavras. E contamos somente até a última tônica!
Será que valeu o doce???
Parabéns pelo texto, Rodrigo!
Claro que valeu, baby!
me lhor éex pri men TÁ lo que jul GÁ lo
Muito legal o texto professor, é sobre aquela música que você me explicou dias atrás!
Eu continuo achando muito interessante a idéia dele, mesmo tendo entendido o que ele fez. Acho que nunca teria uma idéia dessas!
Henrique, outro exemplo muito bacana de como a sonoridade das palavras é bem explorada está em “I-Juca Pirama” (aquele que vai morrer, em tupi), de Gonçalves Dias. O poema começa no ritmo lento do hendecassílabo (verso de 11 sílabas):
No/ mei/o/ das/ ta/bas/ de a/me/nos/ ver/DO/res,
Cer/ca/das/ de/ tron/cos/ – co/ber/tos/ de/ FLO/res
Depois, para simbolizar a violência do canto de guerra, o ritmo se torna mais ligeiro; passamos a ter redondilhas menores (versos de 5 sílabas) com tônica constante na segunda sílaba. Sinta a pulsação dos versos, entoe-os com força, reparando na oscilação entre os sons nasais e o desfecho incisivo o I final:
Meu CANto de MORte,
GueRREIros, ouVI:
Sou FIlho das SELvas,
Nas SELvas cresCI;
GueRREIros, desCENdo
Da TRIbo tuPI.
Da TRIbo puJANte,
Que aGOra anda eRRANte
Por FAdo inconsTANte,
GueRREIros, nasCI;
Sou BRAvo, sou FORte,
Sou FIlho do NORte;
Meu CANto de MORte,
GueRREIros, ouVI.
Esse poema é muito bem escrito, na minha opinião.
Deve ter de praticar muito, para conseguir escrever um texto desse, que faz sentido, filosofa e ainda consegue essa sonoridade.
Acho que vou treinar, me interessei.
Vou pensar em um “Mote”.
Vamos lá! [:)]
“I-Juca Pirama” é um dos poemas mais legais que já li… Lembro dos professores do cursinho recitando-o até hoje!! Parecia que estavamos dentro da mata!!
um blog a não perder para quem ama as palavras!!!
forte abraço
Pingback: Meus haiquases « Mutuca
Pingback: Vitor Ramil « Mutuca